SÔ ZECA O VENDEIRO

SÔ ZECA, O VENDEIRO

Na poeirenta rua Nova, ficava situada a mais bem sortida venda de Vila de São João. Lá se encontrava de tudo; desde um quilo de açúcar mascavo, até um corte de seda, um carretel de linha ou uma lata de doce; enfim, para as modestas condições da maioria dos moradores da vila, a venda de Sô Zeca, era o que havia de melhor. Se possuía um pouco de cada coisa naquela venda, havia algo que lá não se encontrava: asseio.

A venda era o caos, mercadorias misturadas e poeira por todos os lados, cortes de seda ao lado de sacas de arroz, vidros de balas vizinhando com rendas e fitas. E perigosamente, uma lata de arsênico mal fechada em uma prateleira colocada diretamente sobre uma saca de sal grosso, que vivia aberta para facilitar as vendas. Sô Zeca, o vendeiro, era durão, mal encarado e para dizer a verdade, era grosseiro, mas os fregueses davam o desconto, porque era também homem sério, e lá a seu modo boa pessoa.

Suas respostas francas e rudes, se tornavam motivo de risos, porque brigar com ele ninguém queria pois o dinheiro era curto, e Sô Zeca vendia fiado, anotava tudo em um seboso livro de contas correntes, e cobrava sempre um pouco mais nos a lá vão das contas; enfim, as coisas se equilibravam e todos ficavam contentes.

E o tempo passava e Sô Zeca vendia e o povo comprava, mas o arsênico continuava lá, bem em cima do sal, que temperava a maioria das panelas de Vila de São João. Sô Zeca era solteirão, passava muito dos cinqüenta anos, e não gostava de mulheres, mas gostava menos ainda de fiscais do governo, a esses ele odiava, porque como bom sul-mineiro, detestava pagar impostos.

Conta-se que certa tarde, Sô Zeca estava atrás de seu balcão cochilando, quando foi acordado bruscamente por um dos abomináveis homens do governo, que pediu autoritariamente os livros fiscais para examinar. Olhou, virou página por página e por fim disse: isso aqui não está legível, não estou entendendo nada, me explique tudo direito cidadão, ou vai ter problemas. Sô Zeca bufou de ódio, e berrou bem na cara do fiscal – olha aqui sua besta, não está vendo que eu não sou o dono, o dono é governo do seu Getúlio, eu sou apenas o empregado dele, e vá pro diabo que o carregue.

O homem do governo não esperou mais nada, deu o fora antes que as coisas piorassem. Algum tempo depois desse arranca rabo com o fiscal do governo, o arsênico do Sô Zeca deu o ar da graça. A pouca poeira do veneno que caía sobre o sal todas as vezes que o vendeiro vendia o mata-ratos foi intoxicando aos poucos a população da vila, e lá um dia a coisa estourou, cinco pessoas adoeceram com os mesmos sintomas, e o médico do lugar se assustou, não havia dúvidas, eram sintomas de envenenamento por arsênico.

O delegado Zurico foi avisado, e começou a procurar a fonte do veneno, mas na casa das pessoas doentes não havia nem sinal dele. Enquanto Zurico procurava, mais pessoas adoeciam, e por fim o delegado não sabia mais onde procurar, o mistério era total; morrer ainda não morrera ninguém, mas era preciso secar a fonte do veneno, ou ia acabar morrendo gente.

Certo dia, Zurico entrou na venda de Sô Zeca, para comprar fumo e por acaso reparou naquela lata velha na prateleira sobre o sal, e forçando a vista viu um pedaço de rótulo encardido e rasgado, mas que ainda mostrava a metade do desenho de uma caveira e duas tíbias e o começo da palavra veneno. O delegado olhou para baixo, viu o saco de sal aberto, e entendeu tudo. Num segundo, a violenta autoridade saltou o balcão, agarrou o assustado vendeiro, deu-lhe uns safanões e o arrastou para delegacia, dois fulanos que passavam foram chamados para testemunhar, e forma atrás, levando a lata de arsênico e saco de sal.

Estava esclarecido o surto de diarréia, vômitos e nervos endurecidos de Vila de São João. Sô Zeca ficou em apuros, e tentou se livrar da encrenca dizendo: a venda é do governo como eu disse pro fiscal, a culpa é do seu Getúlio, mas não adiantou nada, ganhou com sobras a justiça pelo desleixo, e o povo perdeu o respeito por ele, passando a chamá-lo de Zé Arsênico, e seus negócios foram por água abaixo.

Felizmente os doentes se recuperaram, ninguém morreu, pois como se sabe arsênico aos poucos, até serve de fortificante. Quem não se recuperou foi o vendeiro, viveu ainda alguns anos, mas sempre triste e cada vez mais solitário e agressivo, morreu como viveu, sozinho e amargurado

Maria Aparecida Felicori{Vó Fia}

Texto registrado no EDA

Vó Fia
Enviado por Vó Fia em 14/11/2008
Código do texto: T1282386
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