Segurava uma pequena flor vermelha.
 
O mar agitadíssimo, como que pressentindo uma violenta tempestade, lambia-lhe os pés descalços e, vez ou outra, molhava-lhe o vestido de chita, no qual um amarelo vivo predominava sobre tons de azul e laranja.
 
Um pouco atrás de si, repousando sobre a fina areia da praia, consegui observar como eram bonitas aquelas simples sandálias. Deviam estar com ela há anos, a considerar alguns de seus grossos filamentos já em irremediável processo de degradação.
 
Abaixo do inclemente sol do sul da Bahia, que àquela altura atingia o meio do céu, barulhentas aves projetavam-se em belas espirais na busca por pequenos peixes que se aproximavam da arrebentação.
 
Manuela nem ligava. Preferia manter sua visão perdida nas duas ilhas que interrompiam a rigidez geométrica do horizonte.
 
De onde estava, à espera de um pargo assado - sobre o qual as referências obtidas na pousada foram as mais elogiosas - na melhor mesa do pequeno restaurante caiçara que literalmente debruçava-se sobre a praia, não conseguia disfarçar meu encantamento com aquela cena.
 
Em momento algum daqueles vinte minutos passados, havia hesitado sobre o nome da menina. Era confortável observá-la desta forma. A leveza da cena pedia, afinal, um belo nome. Mais que isso: um nome ligado à imponência da imagem.
 
Dias depois, enquanto aguardava que a luz verde me autorizasse a atravessar a pé a Rua Real Grandeza, me ocorreu que poderia ser Açucena ou Esperança. Açucena seria óbvio por demais, mas Esperança – confesso – me abriu um sorriso só guardado dentro da face, na altura da concessionária da Ford.
 
O pargo, de fato, estava no ponto certo. A carne, alva como a pele da menina, tinha a textura perfeita. O tempero – nada muito incrementado – reassalvava o frescor do peixe, muito provavelmente recém chegado das coloridas traineiras que serviam de repouso para um sem número de gaivotas.
 
E ela ali, ainda a segurar a pequenina flor vermelha, num silêncio ensurdecedor e incapaz de produzir o eco que tanto parecia querer. Sem dúvida era dor de amor, alicerçada na torpeza inexplicável de um desamor que não poderia justificar-se. Não com aquela menina.
 
Quem seria?
 
Algum turista, por certo. Um paulista que a houvesse encantado com qualquer resenha rasa sobre o último filme cabeça de sucesso. Ou o carioca arquitetonicamente despojado em coloridas roupas, sobre as quais ainda pesava o fardo do parcelamento no cartão de crédito.
 
Certamente que seu olhar sôfrego, vertiginosamente atirado ao mar, representava uma metáfora facilmente interpretável, às raias do clichê. Mas isso não me importava. Bons clichês sempre me interessam.
 
Talvez por isso tenha sentido algum ódio de paulistas e cariocas. E de mineiros. E de italianos, chineses e guatemaltecos. A perfeição da cena era algo diabolicamente engendrado para ser eternamente imperfeito. Amores imperfeitos.
 
Pedi o quarto café, que daquela vez veio, não à toa, fumegando dentro de uma garrafa térmica com a tampa quebrada.
 
Então ela levantou-se.
 
Tinha toda a praia. Ao sul e ao norte. Veio, no entanto, em minha direção. Um passo por vez. Flor vermelha na mão direita. Um passo por vez. Um passo por vez. E mais um.
 
Até que finalmente pegou o pequeno caminho cercado por finas toras de madeira que encobriam apenas vestígios de alguma vegetação, bem ao lado de minha mesa.
 
Antes que partisse no meio das dunas, vi seus olhos. Vi perfeitamente. Não fechavam como os meus. E se eram azuis, ou verdes, ou negros, não vi. A névoa espessa da catarata – foi o que me ocorreu como diagnóstico – lhe haviam roubado as pupilas. E a esperança.
 
- Manuela, sussurrei por descuido.
-  O quê? Indagou-me Juliana, xícara de café à mão. O que você falou?
- Nada, respondi com firmeza. Estava dizendo que concordo com você. Também acho que se tiver que escolher entre um carro com ar ou com direção, prefiro mil vezes ficar com o ar.
Subitamente as gaivotas bateram em revoada.
 
Gustaalbuquerque
Enviado por Gustaalbuquerque em 18/11/2008
Reeditado em 18/11/2008
Código do texto: T1290445
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