NADA A DECLARAR

NADA A DECLARAR

Flavio MPinto

A bruma da madrugada e a cerração se escondiam já se vislumbrando uma manhã fresquinha, de céu azul, nos cerros e coxilhas de toda campanha.

Amanhecia e o Sol se apresentava com seu calor aquecendo a Cabanha Mangabeira.

No galpão a peonada se preparava para começar a lida campeira e o fogo de chão aquecia uma chaleira preta. Muitos já se encontravam no campo. A charla da peonada, o cheiro de café forte, chimarrão passado de mão em mão, pelêgos, restos de lã , máquinas, tesouras e selas por todo canto denunciavam que haviam dormido ali mesmo depois da tosquia. Fora um dia duro e outro se avizinhava. Estavam todos alegres.

Na casa principal, Dona Chica preparara o café para o marido e filhos.

Dilma, para variar, já iniciara o dia reclamando com a mãe e discutindo com o pai. Este lhe chamou atenção por ter deixado a camionete toda embarrada na garagem e, mais uma vez, com vestígios de festa na madrugada. O irmão necessitaria do veículo para apresentar-se na Associação Rural, onde ministraria uma palestra sobre os novos métodos de inseminação artificial, que estavam dando resultados surpreendentes na invernada da estância. Didi, assim Dilma era conhecida, para não perder a viagem, também discutiu com o irmão.

- A camionete é minha. Não pense só porquê estudaste na capital vais mandar aqui. E outra, á tarde tenho chá na casa da Manduca. E quero a camionete na garagem.

Edu pensou em responder à altura áquela mal-educada, mas resguardou-se. Só voltaria da Associação tarde da noite e não atenderia a irmã. Afinal, era o administrador da estância e ela, uma inverterada gastadora.

- Carlos, quando vais dar um jeito nessa guria? disse Dona Chica.

- Se aquiete, Dona Chica, que daqui a pouco já mando ela prá capital estudar e ela se ajeita. Lá vai ter o que fazer, responde Carlos se ajeitando na mesa.

- Queres café?

- Não. Só leite. Já tomei mate com a peonada. Me passe a manteiga e o pão.

Dona Chica não podia ter filhos, no entanto, nunca reclamara de tal destino. Já com idade avançada, apenas pedira ao seu velho companheiro de muitos anos, uma companhia para a velhice e decidiram adotar Edu e Dilma. Eram seus dois filhos queridos e criados com tudo que tinham direito. Destarte, muito diferentes em temperamento: Edu mais recatado, estudioso e trabalhador e a moça, mais espevitada, geniosa, mandona, não gostava de estudar e sim "badalar" junto de suas amigas da sociedade. Assídua freqüentadora da coluna social do jornal da cidade. Enquanto Edu estudava Veterinária e Administração para comandar a cabanha, a outra se divertia.

Tarde da noite, Carlos surpreende os filhos discutindo e interfere.

- Didi, minha filha, o teu irmão precisa da camionete para trabalhar. E amanhã vai buscar o dinheiro para pagar a peonada.

- Porquê ele não pega o trator?

- Como ele vai levar o Tiago e o Mano? Como andará na estrada?

- O problema é dele, me deixou sem carro hoje á tarde, não? responde agressivamente Didi.

- Mas como é dele, minha filha...

- Eu já não agüento mais essa estância. Quero ir prá capital. O Edu estudou seis anos lá e agora é minha vez. Todas as minhas amigas estão lá.

- Está bem, minha filha. Vou te mandar estudar lá. Tudo tem sua hora. Fica sossegada. Vou falar com sua mãe e decidir como fazer. Amanhã conversamos. Agora vamos dormir.

O velho estancieiro, com o rosto demarcado por rugas campeiras, dava um boi para não ter mais problemas com a filha.

A manhã seguinte foi trabalhosa para Edu, começando por procurar a chave da pickup. Acabou achando-a no meio das coisas da irmã, que a queria para ir a um clube desfrutar da piscina.

Após o café, o filho, já em companhia dos dois peões, dirije-se ao banco, enquanto Didi, de novo discute com o pai.

- Mas o que queres, minha filha? Tens tudo na fazenda até piscina. Prá que ir na cidade? Pede prás tuas amigas virem aqui, ora, pombas!

- E já vou avisando que quero um apartamento só meu e um carro.

- Sim, minha filha, mas se aquiete.

Didi não sabia, que uma das coisas que Edu faria na cidade, seria procurar um amigo corretor para comprar um apartamento pequeno na capital para a irmã. Semanas depois a levou, matriculou-a num conhecido cursinho pré-vestibular e retornou , sem antes comprar o automóvel desejado. Um 1.0, mas que dava mobilidade ao sonho da irmã.

A vida na cabanha continuava e na capital, Didi continuava sua vida de festas e pouco estudo. Vivia de um lado para outro gastando a mesada que recebia. Estudo, pouco ou quase nada. Apenas roupas de moda, muita paquera, compras, cinema, barzinhos,...Até arranjou um namorado. Este, também era do seu "padrão". Dizia-se filho de estancieiro da fronteira. No entanto, estudo mesmo, só nas mesas de bar. O que mais fazia era política estudantil.

Após num curto tempo de namoro foi morar no apartamento de Didi. E as reuniões passaram a ser realizadas lá. Políticas, ideológicas, beberagem, tinha de tudo. Com muito sexo e drogas. Didi adorava as festas regadas a discussões políticas. Queria estar na moda e em foco.

Mario, assim se chamava o rapagão, passou a ser muito conhecido e influente no movimento estudantil. Se havia passeatas , lá estava ele. Greves, piquetes, bloqueios, protestos, era tudo com sua turma. Pertencia a um partido político extremamente radical e se portava como tal. E Didi junto.

Seis meses depois, a Cabanha Mangabeira continuava só trabalho. Prêmios e mais prêmios em exposições, concursos, sucesso nas vendas , na genética do rebanho. Ia de vento em pôpa.

Certo dia, dia de pagamento, Edu vai ao banco, junto com seus dois peões de confiança, buscar o dinheiro para a peonada. Mal sabia que o Banco do Brasil estava ocupado por sem-terras da redondeza, que já haviam quebrado os vidros grossos da entrada do prédio. Ao tentar entrar com o gerente é brutalmente golpeado por uma foice. É degolado. Misturados com pedaços de vidro, sangue, paus, pedras, os peões conseguem retirá-lo para fora. Apesar de ser socorrido imediatamente morre a caminho do hospital.

Carlos e Dona Chica ao tomarem conhecimento da tragédia, adoecem súbita e gravemente, tendo Dona Chica falecido logo após. Carlos , enfartado, fica inválido.

Didi é chamada ás pressas e sua primeira atitude é tentar vender a estância. Dizia que nada mais a prendia lá e definitivamente detestava aquele lugar. Queria só o dinheiro.

Enquanto isso, a polícia procurava os sem-terra que tinham cometido o assassinato. As informações levavam a uma fuga para a capital. Todos de cabelo cortado, roupa trocada, barba raspada, tudo para dificultar a identificação. Os investigadores descobrem o paradeiro: era o apartamento de Didi, ocupado por Mario e sua turma.

E preparavam outra fuga, agora no carro da garota, que estava em Livramento, quando foram descobertos e presos pela Polícia Civil.

Mesmo dizendo que só falariam em juízo, confessam que as reuniões para a invasão da agência bancária foram no apartamento onde foram apanhados. Aquelas reuniões, em virtude das badernas, estavam sendo monitoradas pela polícia há bastante tempo.

Didi, ao tomar conhecimento das investigações, foge para o Uruguai. É presa pela polícia uruguaia e recambiada para o Brasil. Hoje, cuida do pai inválido e da cabanha, que vai de mal a pior.

Mario e sua turma são expulsos da faculdade, mas alegaram que durante sua prisão foram torturados e depois perseguidos por sua atividade. Anos depois ganharam uma polpuda indenização do governo.

Os sem-terra, como fugiram ao flagrante, estão respondendo o processo em liberdade até hoje. Ninguém sabe onde andam.