Edvaldo acordou do mesmo jeito que acordava sempre, há quase sete décadas. Vestiu os mesmos chinelos pretos, de modo a alcançar, na pequeníssima estante de fórmica, o velho estojo que protegia da poeira a antiga escova de dente já carcomida pelo tempo.

 
No caminho sentiu algo diferente. Em sua imaginação – e quem iria contrariá-la? – Ringo, o velho tigre de bengala, Dandara, a leoa, e Toninho, o mesmo macaco que tanto lhe perturbara durante toda a vida, puseram-se em respeitosa posição de reverência, como se intuíssem a importância daquele dia.


Frei Lucas, o vira-latas que o acompanhava há mais de quinze anos, assim apelidado por possuir uma espécie de coroinha branca no meio de um espesso pelo negro, já o aguardava na entrada do banheiro. Como sempre, lambeu-lhe as pernas, ganhando, naquela ocasião, um afago mais duradouro do que o que se acostumara a receber.


Era um dia de trabalho como outro qualquer, tratou de afirmar Edvaldo, sem toda a habitual convicção, ao perceber o choro e o jeito cabisbaixo de grande parte daquela turma, a maioria integrando o Circo Fontini há várias gerações.


Seria o mesmo Edvaldo quem, em menos de meia hora, ganharia as ruas de Madureira e Cascadura a bordo de seu antigo Fusca 64, equipado com um sistema de alto falantes cujas gambiarras à vista, denunciavam as inúmeras vezes pelas quais o único canal de comunicação do circo havia passado por emergenciais reparos.


- Grande Show com o Internacional Circo Fontini! Não percam! Grandes atrações! Grandes surpresas! Não percam! Hoje, às 17 horas, na Pracinha ao lado da garagem do mercado do Samir! Apenas cinco reais! Circo Fontini, oitenta anos de tradição!

 A gravação tinha alguma melodia. E muita beleza, ainda que prejudicada pelo péssimo estado de conservação da velha fita cassete utilizada. Afinal, Raíssa, a trapezista, tinha uma belíssima voz. Naquela manhã, contudo, a mesma voz que há anos ecoava pelos subúrbios do Rio parecia mais triste. E ele logicamente também percebera.

 - “Besteira”, pensou. “Seu Fontini sempre ensinou que um dia de Circo era um dia no céu”.

 
Edvaldo, numa espécie de transe, respirou e olhou em frente, como que em busca de algum anjo ou querubim. Talvez lhe servisse uma singela nuvem branca. Qualquer uma. Encontrou apenas mais um sinal fechado próximo a padaria do Tião. Encostou e deu balas juquinha aos dois meninos que lhe sorriram, tomando, com o olhar vazio, uma boa média, que pendurou.


Enquanto se vestia, observava pela fresta da lona, já poída e cheia de goteiras, que a frente fria anunciada chegara com horas de antecedência. Encarou o espelho com resignação e vestiu as luvas e os estranhos sapatos. Olhou-se mais uma vez com apuro,  já com o rosto todo tomado pela base branca com a qual mantinha uma estreita relação de respeito, ainda que dela adviesse toda sua rinite alérgica.


Seu reflexo em nada lembrava aquele menino paraibano que fugiu de casa e entrou por baixo da lona no encantado mundo do circo, numa outra época, em um outro Brasil, como gostava de recordar.

Enquanto sua pele retratava a dureza dos anos, e seu corpo, levemente curvado, demonstrava-se deveras frágil até mesmo para suas pernas atarracadas, ficava patente diante de si o irreversível escoamento de suas forças, na mesma velocidade do avanço do tempo, cada vez mais covarde.

Escolheu o mais vermelho entre os batons e lembrou-se que guardado no armário do cômodo ao lado, ainda havia um par de suntuosos adereços laranja, que prontamente pôs sobre os ombros. Sorriu. Era preciso sorrir. Gargalhou e fez caretas. Muitas.

Edvaldo passou em conferência o restante da equipe, e anunciou, como sempre fazia:


- Momento da oração! Peço que todos dêem as mãos e agradeçam em silêncio a honra de fazer arte neste Brasil.


Menos de um minuto depois, puxou o tradicional coro, entoado por todos de forma acachapantemente emocionada: “Circo Fontini, local de esperança!”.


Da coxia, sentado sobre um engradado de cerveja amarelo, observava as peripécias do casal de anãos que tentava, sem muito sucesso, animar uma resignada leoa a subir numa bola prateada. Ouviu quando Heraldinho, um dos artistas, suplicou a Dandara que ela desse pelo menos um rugido, evidentemente negado dada as circunstâncias: os animais estavam sendo alimentados por pipocas com arroz há mais de dois meses. Não havia como Dandara se fazer de selvagem.


O acanhado picadeiro foi sendo tomado, um a um, por todos aqueles gigantes do entretenimento. A trapezista de bela voz, o mágico com seu coelho de pelúcia e baralho repleto de coringas, o atirador de facas e sua feia assistente vestida num maiô verde esmeralda e – era o momento de mais sucesso – Átila, o uno, uma espécie de gigante, forte até o último fio de cabelo, que era açodado por Toninho, o macaco que era o grande nome do circo. Era uma participação realmente gozada.


Já de pé, depois do habitual sinal da cruz, Edvaldo caprichou na cambalhota quando Manel, dublê de domador e apresentador do espetáculo, como se estivesse apresentando uma final entre pesos pesados, anunciou, cheio de salamaleques:


- Respeitáááááááável púúúúúúúblicoooo, com vocês, no picadeiro do Internacional Circo Fontiiiiini... Para a alegriiiiiiiiia da macacaaaaada, digo, criançaaaaaaadaaaaa, diretamente de Houston, Texas, Inglatééééééérraaaaaa... Palhaaaaaaçooo Caaaaaraaaameeeeeeloooooo!!!!!!!!


Diante de si Edvaldo via um sem número de cadeiras tão enferrujadas quanto vazias. Um dos anões, ele enxergava de soslaio por entre a farta cabeleira da peruca lilás, tentava vender dois sacos de pipoca ao casal sem filhos da terceira fila.


 
- Devem estar namorando às escondidas, intuiu em meio a “caras e bocas” decorrentes de uma estranha cobra de pano que começava a beliscar-lhe as nádegas.


Concentrou-se nas três famílias à esquerda, mais precisamente em um negrinho, quatro ou cinco anos, trajando um pitoresco macacão com motivos floridos.


Aproximou-se, e com a habilidade adquirida em anos de alegria, fez jorrar bastante groselha da flor azul que carregava na lapela.


O pequeno menino abriu um sorriso espantado e, em meio a uma adorável gargalhada, caminhou - como dono do pedaço - ao centro do picadeiro, onde iniciou a rolar de um lado para o outro, fingindo ter em sua lapela imaginária uma flor igualzinho a do Palhaço Caramelo.


Terminaram juntos a apresentação, aplaudida efusivamente por todos. Uma maravilha. O menino e o velho. Mais do que um paradoxo, uma metáfora, absolutamente imprescindível para o momento.

O casal aplaudiu de pé. Os amigos de tanto tempo, amontoados em cima do engradado, o fizeram chorando.  Dandara Rugiu. Heraldinho, contrariado, grunhiu alguma coisa.

O menino o beijou bem na ponta do enorme nariz vermelho.


Caramelo chorou, aproveitando os únicos segundos que dívida alguma poderia lhe tirar.

 

 

Gustaalbuquerque
Enviado por Gustaalbuquerque em 21/11/2008
Reeditado em 21/11/2008
Código do texto: T1295538
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