Rua Cuba, 47

O pior dos personagens é aquele que não tem para onde ir.

Você não o controla. É frustrante.

É preciso dar ao personagem um rumo, uma função social, uma perspectiva. Justificá-lo dentro de uma estrutura lógica que o comporte enquanto parte integrante de uma história, de uma crônica, de qualquer coisa.

Mesmo um personagem ruim, um péssimo personagem. Mesmo ele necessita de um lugar para ir.

O meu personagem não.

O meu personagem, sangue pernambucano nas veias, não parece ter lugar para ir. Permanece estacionado em seu caminhar que não vê portas nem janelas.

Transita por opções e impossibilidades com a mesma desenvoltura com a qual rompe seus próprios preceitos, substituídos, dia após dia, por antigas e futuras convicções, sem, obviamente, ligar para o tempo.

Um bom personagem deve obrigatoriamente ligar para o tempo.

Meu personagem o ignora. Minha história não tem como começar assim. Uma pena.

- Tento um café com dois dedos de leite e pipocas de microondas. Alterno alguns canais na televisão. Vou para a sacada e escuto as ondas quebrarem. Uma após a outra. E mais uma, e mais uma -.

É nítido que ele sente meu esforço e deseja correspondê-lo. Assopra-me situações infactíveis. Sugere Amsterdã, linha do trem, agulhas enferrujadas.

Rio.

Não desiste. Não tem lugar para ir, mas não pára de caminhar. Bagdá, Teresina, Duque de Caxias...

Um personagem sem foco é pior do que um não personagem.

Ele me pede uma chance. Conhece-me muito bem e sabe que não tenho paciência para maus personagens. Principalmente quando já se passam das três da madrugada.

Dou cinco minutos. Ele pega. Tomo mais um gole de café frio enquanto aguardo.

Rua Cuba, número 47. Não me diz o bairro.

Chama-me a atenção para uma bela moça que vem descendo a ladeira. Morena, belos olhos.

Deixo que ele prossiga.

Anda com um molho de chaves, calça jeans surrada ao extremo e uma camiseta branca, lisa. Usa uma espécie de gorro, talvez um boné virado ao contrário. Não consigo enxergar bem daqui.

Ele a aborda e sussurra-lhe algo. Imediatamente ela o pede para esperar, o que ele faz, sentando no último degrau da pequena escadaria que dá acesso ao prédio, construído com tijolinhos vermelhos.

Passam-se alguns minutos. Ela volta com mais duas mulheres. Todas morenas e esculturalmente desenhadas por alguém que não eu.

Não seria capaz.

Todos riem e parecem desembrulhar um pacote qualquer. Pardo. Verificam algo e colocam novamente o embrulho dentro de uma velha sacola de supermercado. Daquelas antigas, de papel.

Continuam conversando e percebo que uma das morenas não veste nada por baixo. E usa botas. Temo por me aproximar demais. Não sei onde fica a Rua Cuba. Deixo que ele prossiga, está indo bem. Finalmente está indo bem. Bom garoto.

A moça de vermelho, a que parece ser mais nova, tira algo da bolsa. Todos gargalham. Talvez seja Vodca.

Optaria por cachaça.

Ele deve ter ouvido, ou então, intuído minhas preferências. É meu personagem, não descuidemos disso.

O fato é que consigo sentir o cheiro. Lua Cheia, Salinas. Talvez outra menos votada. Não importa, é cachaça. Bom garoto. Bom garoto!

Bebem e conversam. Os quatro. Cantam algo em inglês. Lembro-me de Clinton, Iowa. E depois de Muriqui.

Não tem mais café.

O foco, agora, é meu. Atenção, cara!

Ele está com três morenas na porta do que parece ser o apartamento de uma delas. Não sei seu nome. Agora já é tarde. Nomes, às vezes, só fazem atrapalhar.

Todos se olham. Todos olham todos. Não há mais cachaça. Só gargalhadas e uma espessa névoa que me faz ficar nervoso.

Agora cantam alguma coisa do Whitesnake.

Love ain´t no stranger, se não me engano.

Conferem novamente o pacote. Ta tudo lá.

Ele pede um minuto. Aponta para cima, ou para o lado, tanto faz. Todos olham pra mim.

Elas mandam beijos. Vários. Ele pede aplausos.

Elas continuam cantando Love ain´t no stranger e levantam os indicadores para cima enquanto bambeiam todas as pernas. São lindas. Espetaculares. Aceno sem qualquer constrangimento.

Nem vi direito quando ele se aproximou.

Pediu que eu segurasse seu molho de chaves e seu boné, de uma empresa de material de construção qualquer.

Antes que pudesse argumentar algo, vi que todos haviam entrado naquele apartamento. Apenas uma luz foi acesa em seu interior.

Era preciso que ele abrisse a porta. Era preciso que ele abrisse a porra da porta.

Era uma questão de tempo.

Meu personagem. Meu!

Desisti quando o terceiro cachorro passou lambendo o que ainda restava de cachaça na garrafa jogada ao chão pela melhor das três morenas.

A que usava botas.

O pior dos personagens é aquele que não tem para onde ir.
Gustaalbuquerque
Enviado por Gustaalbuquerque em 25/11/2008
Reeditado em 16/03/2010
Código do texto: T1302302
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