Quando gritos não interessam

Indicaram-me um pequeno cômodo no quinto andar. Não sei dizer o motivo de ter sido no quinto andar. Mas, também, tanto fazia. O hotel era mesmo uma espelunca. Um hotel barato cujas paredes, certamente, já haviam presenciado muitas das incongruências humanas.

Iria apenas dar seguimento à sua sina. Sina de um hotel barato.

O forte cheiro de mofo exalava do carpete e me enjoava.

Por trinta reais a diária não achei correto lamentar. Usaria nem uma hora inteira.

Deitei. Levantaria em seguida.

Ísis era uma mulher barata também. Se fosse um hotel não cobraria mais de vinte e cinco reais. Se cobrasse estaria fodida.

Falo em Ísis porque é necessário. Desde o primeiro minuto ela já havia me irritado. Não desgrudou os olhos de meu relógio. Fotografou em sua mente imunda meus cartões de crédito, nos mesmos cinco segundos nos quais abri minha carteira para pagar a conta.

Odiava ter de almoçar em restaurantes como aquele. Comida japonesa a quilo. Que ela misturou com lasanha de bacalhau. E dois pedaços de batata corada.

Era horrível.

O queijo escorria por seu queixo e ela continuava a me falar sobre vinhos. Não estava interessado. Não suporto quem fala sobre vinhos. Naquele momento, porém, era a melhor escolha. Ela havia ensaiado iniciar um diálogo sobre dançarinas do ventre. Suas amigas.

Comigo não.

Disse que era escritor. Não me importava em mentir. Abriu-se um sorriso de espanto e evidenciou-se uma centelha de preocupação.

Certamente imaginou que eu não tinha dinheiro. Voltou a analisar o relógio. Acho que se abaixou para olhar a marca do tênis. Quando subiu, pareceu-me um pouco desapontada.

Na próxima vez direi que sou cirurgião. Ou ceramista.

Enquanto eu tirava a roupa ela falava sobre amor. Acho que falou sobre morangos e champanhe.

Pedi dois minutos e encarei o espelho embolorado daquele hotel de merda. Ainda dava para desistir.

Dei de ombros. Estava morto, embora meus sinais vitais permanecessem inalterados. Desistir não ajudaria em nada. Quem sabe o frigobar.

A cerveja quente desceu pessimamente. Não tentei as batatas. Pensei em seu prato naquele restaurante do Grajaú.

Dizem que o Grajaú é a Urca da zona norte. Eu acho que não. Para mim, o Grajaú é a Urca do subterrâneo.

Ísis vestia uma calcinha com motivos tribais. Havia uma mulher negra estampada na frente. Um beiço enorme. Nunca tinha visto algo tão horrível.

Quinto andar. Talvez entendesse mais tarde. O hotel parecia vazio.

Ela se aproximou e não falava mais em morangos. Ou, se falava, eu não ouvia.

Não a beijei. Ela não escovara os dentes. Morangos com bacalhau. E duas batatas coradas.

Enquanto nos entrelaçávamos lembrei-me de minha mãe ter jogado em meu pai, anos atrás, um sanduíche de atum. Com o desvio, o pão de forma caiu, e a maionese, mais clara do que o normal, escorreu no azulejo ocre da cozinha.

Ísis – Isislaine (não precisava ter me contado) – usava leite de rosas. Dona Greta, o melhor bife de panela do Rio, sempre usou durante as faxinas. Reconheceria Leite de Rosas num raio de centenas de quilômetros.

A calcinha já estava no chão e a africana continuava olhando para mim. Tratei de pôr minha camiseta por cima.

Perguntou-me, forçando cara de vadia, se eu queria preencher seu vazio.

Adoro ironias.

Isis gritava para me agradar. Talvez eu não fosse o que ela queria, mas meu perfume ainda mantinha-se fixado em meu pescoço. Isso deve ter sido pesado.

Eu olhava para a parede e nada sentia. Nem pressa, nem pena, nem ódio, nem raiva. Em instantes acabaria com tudo aquilo. Talvez tivesse que beijá-la novamente e contar qualquer mentira que lhe interessasse.

Não foi preciso. Pediu-me um cigarro e ficou curtindo o barulhento ar-condicionado.

Perguntou sobre meus pais, o que faziam, onde viviam. Era uma alternativa que lhe pareceu viável. Entendo alternativas viáveis.

Apenas fez que sim com a cabeça quando respondi. Não se sentiu à vontade para repetir “Formiga”. Faria mal a ela. Fiz-lhe uma espécie de cafuné.

Obviamente paguei a conta. Disse que ligaria. Ela perguntou se eu me incomodaria em deixá-la na casa do noivo.

Chovia muito quando cheguei em Cascadura.

Sob a marquise de uma loja de tecidos, entre muita água e poeira, um mendigo dormia e parecia sonhar.

Estava a salvo.

Liguei na CBN. Entrevistavam um historiador chileno. Tratavam sobre os reflexos da ditadura na consciência coletiva do povo latino americano.

Pensei de novo no Grajaú. E no estômago de Ísis. Lasanha com sashimis de salmão.

Liguei para o 130. Gostava daquela voz desde menino.

Gustaalbuquerque
Enviado por Gustaalbuquerque em 25/11/2008
Reeditado em 25/11/2008
Código do texto: T1302486
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