Débora quer casar

Ela olhou pro lado, colocou as mãos sobre a cabeça e respirou.

E respirou de novo.

Escreveu quase um parágrafo antes de apagá-lo de uma só vez.

Consultou sua caixa de entrada. Virou a cabeça. Buscava alguma coisa que lhe distraísse a atenção.

Não seriam os grampos coloridos nem a pilha de papel à sua direita.

Pediu um café à secretária. Segundos após, trocou por um chá. Erva doce ou camomila. Não queria apenas o amargor do chá preto.

Tomou chá e o café, que acabou ‘chegando’ por engano e dispensou as torradas que lhe foram oferecidas. Estava sem fome.

Por uma fresta de janela observou que começara a chover. Uma chuva fina que finalmente havia conseguido distrair sua atenção.

- Com certeza vai chover no fim-de-semana. De novo? Que droga, pensou, enquanto mantinha seus olhos vidrados num ponto qualquer da parede à sua frente.

Levantou-se e ao sair da sala havia esquecido seu rumo. Não voltou. Manteve-se ereta, como sempre, diante de um corredor que lhe parecera maior do que o normal.

- Corredores. Nunca penso em corredores. Só gente indo e voltando, andando daqui pra lá e de lá pra cá.

Ignorou a inutilidade do pensamento e seguiu.

Já no banheiro olhou-se novamente. Pela sétima vez só após as dezesseis horas. Não via tanta beleza assim.

Tola.

Seus sentimentos a angustiavam. Suas possibilidades, de tão antagônicas, a diminuíam. Suas perspectivas, razão maior de sua dor, permaneciam lá, intactas, como que tremulando no pico de um monte acima dos demais.

Uma flor lhe abriu o sorriso que sua amiga de ocasião não conseguira, minutos atrás. Flor ordinária, sem muita graça, num vasinho de plástico marrom em cima da mesa de sua estagiária.

Imaginou que aquela tinha sido a primeira flor a provocar-lhe um sorriso sincero. Não lamentou. Lamentar o quê, afinal?

Queria – e muito – a promoção. Sabia também que seu trabalho tinha tudo para ser reconhecido. De certa forma estava sendo, chegou a pensar.

Mais uma vez respirou. E mais uma vez olhou o pequeno porta retrato. Nenhum deles havia abandonado seus postos. Papai, mamãe, Ricardo e Ringo, um dálmata de seis anos.

Então, decidida, pronta, pegou seu estojo de maquiagem e trancou-se no banheiro. Não usou mais do que dez minutos. Seu prazo expirava.

Advogadas competentes não perdem prazos.

Andou até o Tribunal – olhando pro céu. Não poderia chover - e solicitou ao ascensorista o andar grifado em suas anotações.

Ele não a aguardava. E por isso mesmo sentiu-se ainda mais eufórico. Praticamente um menino, aos 62 anos.

A sala com vista para a baía de guanabara lhe tirou alguns suspiros. Conseguiria dali localizar sua rua, no Flamengo?

Subitamente viu-se brincando no playground dos 10 anos de idade.

Retomou, contudo, sua linha de raciocínio sobre o processo. Abordou concisamente todos os aspectos afeitos à causa. Não deixou um único ponto em branco.

Quando finalmente deu um único gole no copo de água gelada disponibilizado pelo velho desembargador, viu que tinha chegado o momento.

Alguns dias de espera e, enfim, sua decisão lhe levara novamente ao Tribunal, desta vez minutos antes que suas portas se fechassem até a segunda-feira seguinte.

- Que bom, doutora. Que bom. É sempre reconfortante encontrar novas advogadas com tanto talento quanto o seu. Meus parabéns. Olhe, estou tão impressionado com você, com suas palavras e com sua postura decidida, firme, que vou deixar a senhora mesma decidir a causa. O que me diz? O que devo julgar?O que tem a dizer sobre o que conversamos semana passada?

Ela nada mais disse.

Bem devagar, mimeticamente, levantou-se e virou-se contra a parede. Deixou primeiramente suas pernas à mostra. E logo depois sua bunda, emoldurada por uma minúscula calcinha de renda. Exibiu-se durante infindáveis minutos.

Até que ficou apenas com seu salto alto marrom – ele havia pedido carinhosamente – e com seu delicado pingente de ouro. A letra D repousava macia entre seus seios.

Fechou os olhos apenas quando sentiu o hálito azedo de sua promoção. Prendeu a respiração o quanto pôde. Mas cedeu ao beijo. Tinha que ceder. Logo se pegou pensando em Ricardo, que ainda estudava pro concurso da magistratura. Não sorriu. Preocupava-se com ele. Sabia que só casariam quando ele passasse na última prova. Ela, contra tudo e contra todos, afinal, estava fazendo a sua parte.

E a bem da verdade ela nada sentiu. Nem vergonha. Até o nojo parecia estar congelado. Não aumentava na medida em que a língua daquele senhor descobria novos destinos, novos sabores, naquele corpo realmente escultural.

Também não contou os minutos. Seria, de fato, muito pior.

Foi até com certo alívio que repetiu, olhando para cima e desviando da enorme barriga que separava seus olhos dos olhos do velho, o que ele lhe mandara repetir. Repetiu com gosto, com vontade. Não mudou uma única palavra.

Estava terminado.

Limpou-se com lenços úmidos que carregava na bolsa e permaneceu abraçada aos seus projetos profissionais, enquanto eles assim demonstraram querer, em meio a uma respiração ofegante que, aí sim, passou-lhe a enojar demais.

Quando se despediram com dois beijos prolongados, prontamente ela ganhou a rua, andando determinada pelo centro de um Rio que se preparava para um fim-de-semana chuvoso.

Não chorou. Nem uma lágrima sequer. Nem uma lagrimazinha.

E chegou, finalmente, ao metrô.

Estava muito atrasada. Iria ao cinema na sessão das oito e meia. Estação Unibanco.

Quando deixou a escada rolante da estação Flamengo, apenas preocupou-se em olhar pro céu.

A chuva, se não tivesse parado, lhe roubaria dois ou três preciosos minutos.
Gustaalbuquerque
Enviado por Gustaalbuquerque em 25/11/2008
Código do texto: T1303150
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