O Sorriso Disfarçado

Ian acorda. Olha para o relógio e vê que é cedo demais.

- Porra, são 3 horas da tarde... ainda? Merda.

A noite foi devastadora. Impiedosa. Cruel. Talvez ele pense que jamais poderá achar seu coração novamente. Pior, parece ter levado um soco no queixo, daqueles que chacoalham o cérebro e que faz perder os sentidos. Desmaiado, em coma. Coração e mente em pedaços, muito bom. Que mais falta? Ah sim, a alma. Mas Ian julga que não possui alma há um bom tempo. Claro, depois daquela noite em que transou com a namorada do melhor amigo, ele se considera um filho da puta nato. Mas não é só isso, a bondade que residia em seu coração há tempos está perdida.

- Quê? Que merda é essa de bondade? Bondade é a...

É, isso mesmo, assim ele pensa. Pobre Ian, que foi que lhe fizeram nos tortuosos caminhos da vida? Melhor, o que foi que fez a si mesmo? Não é a sombra do que foi um dia. Mas claro, não podemos fugir. O álcool ingerido na noite passada ainda queima seu estômago. O nariz ainda dói, os pulmões fervilham. As olheiras não param de aumentar, até parece que levou dois socos bem dados. É... Onde está sua garota? Mais uma de suas paixões descartáveis. Claro, sempre assim: 'me apaixono por você agora, mas amanhã nem me lembro do seu nome.' É óbvio, ele se apaixona por qualquer mulher que julgue interessante e lhe dê um belo sorriso. Mas que tenha um belo par de coxas, seios e um rosto lindo. Beleza interior é coisa de fracassado, diz ele. Cadê sua garota, cara? Levou outro pé na bunda? Porque é sempre assim, quando passa do primeiro para o segundo estágio a coisa muda, e muito. Ian deixa de ser um indiferente para ser um idiota babão. Otário. Não sabe dosar sentimentos, se mata aos poucos.

- Não fode! O coração é meu! Eu colo essa porra com a cola que eu quiser... nem que seja cola de sapateiro inalada!

Ele jamais entenderá. Pobre alma. Pobre diabo. Sabe muito bem da vida como ela é, mas se nega a aceitá-la. Prefere ficar trancado no quarto, deitado. Ouve seus cantores e cantoras de fossa preferidos, ou como ele mesmo diz: sad boys with guitars, sad girls with pianos. Chega a ser deprimente. Frustrante. Broxante. Mas aí vem mais um dia, ele levanta da cama, se olha no espelho. Vê estampada em seu rosto a vergonha, a falta de coragem. Mas de quê adiantaria ter coragem se lhe faltam forças? No café da manhã toma um gole de uisque, diz que é pra rebater a ressaca. Café da manhã às 4 da tarde. Muito bom. Ainda decide o que vai fazer. Ligar o computador, ler um livro... No fim de tudo acaba acendendo um cigarro. Tem que tomar um banho, urgente. Exala o cheiro da derrota da noite anterior, a derrota de sempre, que lhe acompanha desde o dia de seu nascimento. Mas tanto faz, ele já a aceita como parte da vida. Até conversa com ela, às vezes. Idiota. Ainda acha que um dia as flores haverão de desabrochar e trazer uma primavera em seu coração. Não. Se outrora viveu um outono, hoje vive imerso no inverno, frio, gélido, sem vida alguma.

- Claro, você acha que vai dar certo no fim? Vai-te à merda. Nada vai dar certo...

Mais uma noite está por vir. Mais paixões fugazes, amores descontrolados e desvairados. Ian sempre foi um Pierrot no carnaval da vida, e quando tinha a oportunidade de ser um Arlequim, vacilava. Amargo, demais. Sempre procurou alguém que lhe ensinasse o caminho para a tristeza. Mal sabe que seu coração é uma estrada sem fim até ela. Pobre Ian. Vai voltar a se iludir, vai voltar a escrever suas desilusões, vai voltar a chorar ouvindo Nick Drake e tendo um cigarro como único amigo. Tendo a garrafa de uísque como apoio moral. Ele ri. Sabe que nada vai mudar, e mesmo assim segue adiante. Certo, ele sabe que esse é o único caminho a seguir. Nunca teve escolha. E se teve, ignorou, prefere ser assim. Não para que os outros tenham dó dele, ao contrário, quer que os demais se explodam. Sabe que o caminho que escolheu não tem volta. Anda logo cara, há alguém te esperando na escadaria do prédio hoje a noite. É ela. Ela ainda te ama. E você, a ama? Cuidado, você ainda vai morrer disso...

- Ah, me deixa...