Não bebem uísque em Paris
Assim que beberam o uísque, Mauro começou a sentir os efeitos do que fizera. Ele sabia, pois tinha estudado a fundo as propriedades do veneno, que a morte de ambos seria lenta, gradual. Naquele momento tinha certeza de que sua tontura e sua visão distorcida eram frutos de sua cabeça e das suas fraquezas. Seu medo maior, afinal, acabava de se concretizar na forma de um arrependimento instantâneo contra o qual lutara durante os três meses nos quais se preparou para o grande dia.
Eliane estava feliz com as passagens pra Paris. Nunca tinha saído do Brasil e mesmo a Barra da Tijuca deixava quando muito apenas para ir na casa de alguma amiga que fizera nos tempos em que trabalhava como gerente de uma loja no Rio Sul. Abanava-se com os dois bilhetes da Air France e repetia, emocionada, o quão contente estava com a possibilidade de concretizar um sonho que acalentou durante toda a vida.

- Amor, você me faz a mulher mais feliza do mundo! Mas porque não abrimos um bom vinho? Não se bebe uísque em Paris, bebe?

Ela estava radiante.

Demorou para desconfiar que seu marido estava estranho. Na verdade só passou a perceber que havia algo de errado quando o viu prostrado na pequena área anexada à cozinha do simpático apartamento no qual moravam desde que casaram, há pouco mais de dois anos.

O plano parecia ser bastante razoável dentro da ótica de um suicida: morreria feliz, comemorando algo que sempre sonhou ao lado da mulher que tanto amava. Havia garantido que nenhum dos dois sofreria dores e incômodos causados pela substância branca misturada na exata proporção recomendada para infusão na bebida destilada e, também após árdua pesquisa, se convencera pormenorizadamente que antes da morte iriam sentir uma leve sonolência e deixariam de respirar sem que sentissem asfixia ou espasmos de qualquer ordem.

Num bonito vestido de festa Eliane não entendia o motivo pelo qual a data tão especial estava de certa forma tomada por uma aura de extrema tristeza. Aproximou-se de seu marido e com a voz suave e pausada indagou os motivos daquele súbito choro que Mauro já iniciara ao lado da máquina de lavar roupas.

De início não entendeu os infinitos pedidos de desculpas e assustou-se demais com a eloqüência com que ele gritava enquanto soluçava e olhava para o teto com as mãos entrelaçadas. Não entendia o que significavam aquelas palavras desconexas que uniam em arremedos de frases os termos morte, desculpas e culpa.

Culpa de que? Do que está falando, meu amor? Pare com isso, estou ficando nervosa! Mauro, o que está acontecendo? Pelo amor de Deus, fale comigo!!

Mauro apenas a olhava ajoelhado e abria a boca em sinal de completo desespero, misturando lágrimas e saliva e àquela altura balbuciando coisas desconexas em completa histeria.

Seu descontrole havia contagiado Eliane que também chorava assustada tentando consolar o marido e ao mesmo tempo encontrar algumas respostas naquela conduta aparentemente incompreensível.

Um copo de água com açúcar seria uma opção plausível, raciocinou de forma adequada.

Alguns passos separavam a área da geladeira no cômodo ao lado. Dois dedos de açúcar, água bem gelada e uma ligeira mexida. Pronto. Isso deve ajudar.

Mauro não mais falava. Estava inerte, desmaiado em posição fetal sob a janela de alumínio que dava para o vão central do edifício. Seus sinais vitais – Eliane tratou de checar imediatamente apesar de seu estado de nervos – estavam normais. Desabotoou os dois primeiros botões da camisa social do marido e deparou-se com um pequeno volume no bolso colado ao peito. Um bilhete escrito em esmerada caligrafia.

“Meu grande amor,

hoje cometi meu suicídio. Se tudo correu dentro do planejado você deve me encontrar por volta das 22:00h / 22:30h. Certifiquei-me que estaria próximo com esse seu celular com e-mail que tanto atrapalhou nossos almoços. Misturei veneno à bebida alcoólica de modo a encontrar na morte a saída adequada para uma vida inglória e repleta de tristezas. Levo junto minha mulher, a mulher da minha vida e mãe de meu único filho, que, a propósito, deve estar dormindo um sono profundo, pois dei a ele uma dose suficiente de calmante.

Manoel, não dava mais para viver dessa forma, afogado na mentira e na angústia de não poder dividir com você toda a minha alegria de viver. Espero que Eliane me perdoe numa próxima vida e espero também que entenda que só estou a levando porque não quero que ela saiba de modo algum de nosso relacionamento. Estou certo de que será melhor assim. Acho que ela, a contrário de mim, morrerá feliz. Isso me tranquilizou bastante...

Olha, passei tudo o que podia para o seu nome. Não fique bravo comigo, ta? Ela assinou sem saber a escritura do apartamento e a papelada do Detran também está OK. Ganhou um belo carro novo! Mandei lavá-lo nesta manhã.

Meu amor, por favor não deixe que meu filho saiba de nada. Peço que o entregue para minha sogra e o auxilie sempre que achar necessário. Ele é um bom garoto, apesar de você implicar com suas atitudes. É uma criança, Manel.

A você deixo todo meu amor e um enorme pedido de desculpas por não ter coragem de discutir com você sobre essa minha atitude e principalmente por não poder ser seu anjinho como você sempre quis.

Perdão, perdão, perdão! Foi melhor assim.

Um beijo enorme, com eternas saudades e amor infinito.

Te amo incondicionalmente.

Mauro.


P S. Tomei o remédio exatamente às 21:00h. Em 45 minutos tudo já estará terminado.”

Algo quente tomou o peito de Eliane. Olhou novamente as passagens que momentos antes colocara sobre a mesa de jantar e fitou com atenção o relógio de parede sobre o microondas. 21:39 h.

Correu até o quarto onde ajoelhou diante da cama de seu filho que dormia suavemente. Diante de si um porta retrato com a foto da primeira aula de natação que o lindo menino fizera no Marapendi. Papai, mamãe e um pirralho sorridente de touca azul na cabeça.

O dia estava lindo, lembrou sem desejar.

Beijou a testa do menino e segurou sua mão como sempre fazia, cuidando para chorar em silêncio para não acordá-lo.

Gustaalbuquerque
Enviado por Gustaalbuquerque em 02/12/2008
Código do texto: T1314638
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