Chave de ouro

Alessandra foi a última a subir no ônibus aquela quinta-feira. Eram onze da noite, e do campus até sua casa, mais uma hora e meia de estrada. Tudo o que queria era poder sentar-se na poltrona do fundo e esperar o veículo entrar em movimento. De segunda a sexta, durante esses cinco mil e quatrocentos segundos entre a faculdade e sua casa, Alessandra da Silva era Pilar Ortega.

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Pilar acordou-se. A escuridão do quarto era a mesma, o ar pastoso do verão e o mosquiteiro, imóveis como à hora em que se deitara. Buscando outra vez relaxar, virou-se de lado. Juan estava dormindo de olhos abertos. Sabendo que o sono não regressaria de pronto, levantou-se e foi escrever. Pilar escrevia poemas.

A hora feliz de seu dia era quando Juan estava apagado e satisfeito, o cão dormia e a rua mergulhava no silêncio saboroso que só as ruas provincianas possuem na madrugada. Era como se o mundo caísse num precipício e apenas a mesa, o abajur, a xícara de leite, as folhas de papel, a caneta de tinta preta, a cadeira e ela, Pilar, permanecessem, suspensos no espaço como uma constelação desconhecida, jamais vista por ninguém na face da Terra. E todas as noites, os treze versos de um soneto incompleto vinham-lhe à mente. Aquele poema falava disso de ser uma constelação, e havia anos que tentava a poetisa para ser concluído. Faltava-lhe uma Chave de Ouro – pois é assim que devem terminar os sonetos. Pilar habituou-se a desistir dele. Outros sonetos, menores, aglomeravam-se como pequenos sistemas solares, todos nascidos de um poema perfeito e inacabado. O sono veio. Pilar acomodou-se ao corpo de Juan. Não queria acordá-lo. Exausta, dormiu.

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O ônibus dos estudantes aproximava-se do final da linha. Alessandra despertou, desceu despedindo-se do motorista e foi para casa, imaginar, sozinha, coisas da intimidade de Juan e Pilar.

A noite seguinte era sexta-feira. Alessandra as detestava, porque os colegas vinham mais falantes que o habitual. Era-lhe mais penoso para, no fundo do ônibus, relaxar e ser a outra. Mesmo assim, depois de alguns minutos, adormeceu. Abriu os olhos como Pilar.

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Nas noites de sexta, Juan jogava futebol society no clube com os colegas da empresa – e com esse acordo conseguiram manterem-se felizes. Pilar cochilou até a meia-noite. Sem que pudesse recordar depois como aconteceu, sentiu o sopro divino que poria em movimento novamente a constelação de sua poesia. E, quando lhe perguntaram depois na primeira entrevista, disse que foi assim: foi como uma milagrosa força da natureza, dançando com a música que move o Cosmos. Repleta dessa melodia, toda a sua existência então, resumiu-se às dez sílabas poéticas que a levaram ao êxtase, e enfim, a completude do soneto surgiu a partir do nada. No furor de alegria da criação, Juan chegou do futebol. Pilar jogou-se nos braços de seu homem como fazia ainda no tempo de seus primeiros momentos de intimidade. Já era sábado, e aos criadores é reservado o sétimo dia para o merecido descanso.

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A estudante acordou num sobressalto. O veículo pareceu-lhe estar rápido demais, e os gritos vindos das poltronas da frente foram suficientes para alarmá-la. Tudo foi muito rápido: a derrapagem, o guard rail, o barranco, os trezentos metros capotando ribanceira abaixo.

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Alessandra da Silva, vinte e dois anos, estudante de letras e escritora amadora, faleceu sem ter concluído a faculdade, e sem escrever uma única linha do romance que planejou por anos.

Pilar Ortega, trinta anos, poetisa, jamais existiu porque o romance em que era a protagonista nunca foi escrito.