AS MÃOS DE SOFIA

AS MÃOS DE SOFIA

1959, 1960, 1961, de um certo mundo celta, da Germânia, da arborizada rua Germânia, as duas jovens amigas, Sofia e Mina, abandonavam o Bonfim rumo à rua Frei Manuel da Ressurreição. Sob a solaridade das quatro estações, Sofia, durante a caminhada, levava as mãos aos cabelos longos, finos e claros, contrariados pelo sopro da rosa-dos-ventos, ajeitando-os. Eram inícios de tardes de sábado, e no portão da casa da Frei Manuel, ele, bastante ansioso, as aguardava. Nesses dias, a mãe, após a faxina, preparava o material de manicure. Ao cheiro da casa toda encerada confundiam-se aromas diversos. O aroma da acetona e de tantos perfumes coloridos que exalavam dos vidros de esmalte.

De súbito ele as avistava, Sofia e Mina surgiam lá no fundo da descida da Frei Manuel, e então ele, cheio de felicidade, assim anunciava “Mãe, pai, mãe... a Sofia e a Mina, elas estão chegando!” Após a festiva recepção, os meninos, ele e o irmão mais novo, disputavam o colo de Sofia, as carícias maternais de Sofia. Na sala, a televisão ligada antecipava uma longa sucessão de programas e vasta platéia. E tinham início as disputas. A vizinhança e os parentes começavam a chegar e logo a disputar os melhores locais da sala, entre poltronas e sofá, para acompanhar os programas de televisão. Desenhos na TV... A minha mãe preparava a mesinha na qual fazia as unhas de Sofia e de Mina. As mãos de Sofia nas mãos de minha mãe. As unhas aparadas, belamente tratadas e depois esmaltadas. Cores claras, cores nobres. As mãos de Sofia ao ar, o esmalte secando, em seguida o retorno do menino ao carinho maternal de Sofia. Entre a vigília e o sono, no colo de Sofia, as unhas ornadas de esmalte, a lisura, a maciez das unhas de Sofia acariciando o rosto dele, o perfume do esmalte, unhas adornadas. E em meio ao ruído de vozes dos meus tios e tias: Odevaldo e Darcy, Nair e Eduardo, Manuel e Isabel. O primo do meu pai, o Tonela, a mulher e os filhos; a vizinhança: seu Amantino e Mercedes, seu Zé e dona Jacinta... a programação: “Astros do Disco” na TV Record... Rinaldo Calheiros e Silvana “Jura-me”, Vilma Bentivegna “Hino ao Amor”, Celly Campello “Banho de Lua”, Ângela Maria e Agnaldo Rayol “Ave Maria no Morro”, Dalva de Oliveira “Bandeira Branca”, Edith Veiga... A seguir “Luta Livre”, e depois o show de vedetes. O rebolado da vedete Angelita Martinez fascinava meu pai e encolerizava minha mãe. Cena de ciúmes (no domingo, conflitos de casal). Entre as visitas, a disputa pelos salgadinhos e por uma fatia de bolo, pratos antecipadamente preparados pela mãe.

Entre ele e o irmão mais novo, a disputa pelo colo maternal e por afagos carinhosos de Sofia prosseguia, até que ambos declinavam em profundo sono.

Numa certa ocasião, o convite. O amor de Sofia, o mar de Sofia, a noiva Sofia, o perfume de Sofia, Pedro e Sofia, o casamento de Sofia. A florida “Igreja do Bonfim” recebe a noiva Sofia. Vestida de branco, vestido justo, longo, colado ao corpo... estranhamento, parece uma sereia?! E uma longa grinalda-de-noiva. Luvas e um buquê de flores cobriam as mãos de Sofia. Naquele dia, afinal, as unhas de Sofia foram feitas pela minha mãe?! A noiva segue rumo à nave central da Igreja, e ele sente o perfume da noiva, e ela passa sorrindo, pertinho dele. Nesse dia as noivas parecem ignorar as crianças. E com solene impaciência ele assiste toda a cerimônia. O desejo dele: tocar em Sofia!

Por fim, após o encerramento da cerimônia religiosa, na porta da Igreja, uma multidão de convidados a cumprimentar os noivos, ele procura se aproximar do casal, ele procura se aproximar da noiva, contudo, o alvoroço dos adultos não permite que ele cumpra o capricho infantil. A agitação dos adultos, o colo de Sofia, as mãos enluvadas de Sofia, as unhas... foram feitas? Ele se atrapalha entre as ágeis e estúpidas pernas dos adultos... Tumulto festivo.

A festa de casamento, na casa da noiva, na rua Germânia. Uma longa mesa estendida no terraço da casa. O tumulto festivo invade toda a casa. Clarões intensos clics flashs fotos. Ele procura se aproximar de Sofia, tudo em vão. Ele procura pelo pai e pela mãe, tudo em vão. Olha ali, a Mina! Apenas em rápida passagem. Então ele se acomoda debaixo de uma romãzeira, no jardim defronte a casa, e é desta perspectiva que ele aprecia os movimentos ondulantes da noiva Sofia: por meio de uma fresta, entre a lona (chovia?!) estendida e o início do teto do terraço, banhada por uma luminosidade cintilante, a sereia Sofia bailava ao redor da imensa mesa, acolhendo com carinho os convidados, e brincava como a sereia do meu caderninho para colorir... Ah, o mar de Sofia. Com gestos majestosos, ela amparava, num dos braços, a longa grinalda. Ela irradiava luzes de felicidade. O perfume de Sofia, as champanhes, o bolo e os confeitos exalavam um cheiro deliciosamente doce por todo o jardim, acalmando a raiva do menino inconformado com o rapto de Sofia pelo mundo de gente grande.

E dali ele contempla os tempos passados. A titia Wilma - irmã da mamãe - junto ao marido, o titio Durval - irmão de Sofia –, ambos acomodados num local privilegiado da mesa. A agitada mãe da noiva, dona Margarida, a atender as freqüentes solicitações dos convivas...

E o escritor sente o que foi antes, quando ele era criança. Ele relê o reino mágico da infância. Hoje, estranho tudo lhe parece, porque tudo é reino mudo e morto.

03/12/2008, novamente o escritor sonhou com Sofia. Ao despertar, as ondas do sonho agitavam estranhamente a realidade. Confuso, ele se ergue da cama. Com certa dificuldade ele caminha até a porta da biblioteca. Hesitante, ele pára na porta da biblioteca. Em seguida, ele caminha lentamente até alcançar uma das prateleiras de livros. Ali se encontra a dezena de livros que à Sofia pertenceu. A ele coube a tarefa de preservá-los após a morte de Sofia.

Ele contempla carinhosamente o colorido das capas duras de cada livro. Com vagar, ele ergue as mãos até a altura dos livros enfileirados, ele fecha os olhos e suavemente neles toca. Ele então sente novamente a lisura das unhas de Sofia, e ele sente intensamente o perfume das mãos de Sofia.

Prof. Dr. Sílvio Medeiros

Campinas, é primavera de 2008.