Bueiro, um bueiro


João Aparecido era negro. E velho. Era negro e velho. E também era pobre, miserável. Morava num barracão com teto de amianto que acumula sujeira e proporciona água indesejada nas noites que chovem. Água Santa é o nome do bairro que não lhe deu um endereço.
 
João Aparecido pegava suas correspondências no asfalto, através de um amigo que lhe cobrava dois reais por mês pela gentileza.
 
Antes não pegasse.
 
 João Aparecido tinha uma paixão. Sua paixão também era negra. E velha. Negra e velha. Que também era pobre, embora não fosse miserável.
 
É que Idalina trabalha na cooperativa dos tratadores de lixo da zona oeste. Lida com garrafas plásticas e latinhas de cerveja três vezes por semana. Na terça, quinta e sábado trabalha com dejetos orgânicos.
 
João Aparecido não recebia muitas correspondências. Na verdade quase nunca as recebia. Mantinha o endereço do amigo como uma espécie de elo com o mundo que existe além de seu barraco.
 
Antes não mantivesse.
 
É que João Aparecido resolveu passar no tal logradouro, naquela ensolarada manhã, apenas porque não tinha mais o que fazer. Quase nunca tinha.
 
Dentro do envelope branco, emoldurado nas cores da bandeira, uma foto de Idalina.
 
Apenas uma foto e uma frase: “Obrigada, mas não ‘asseito’”.
 
João Aparecido não tinha mais do que quatro dentes, nenhum branco. De branco mesmo apenas o fundo de seus olhos, de onde saíram algumas lágrimas.
 
É que Idalina não tinha posses. E também não tinha perspectivas e aspirações. Certamente foi por isso que não aceitou casar-se com um velho de 69 anos. Sabia contar a Idalina, e, por isso, se assustou quando viu que as idades somadas ultrapassavam 130 anos.
 
João Aparecido havia juntado algum. Há anos economizava; desde que havia encontrado com Idalina na saída do Maracanã. Ele flamenguista e ela vascaína num jogo entre tricolores e botafoguenses.
 
É que ambos vendiam salsichão com cerveja em improvisadas churrasqueiras de ferro retorcido.
 
Antes não vendessem.
 
João Aparecido preferiu morrer, assim, sem mais nem menos. Não sabia argumentar, na verdade nunca soube. Na verdade mesmo, para que sejamos mais honestos, nunca quis aprender.
 
Para ele ‘não’ sempre foi ‘não’. E foram muitos, foram tantos.
 
Escolheu um meio muito agressivo. Cortou sua garganta com um pedaço de lata de guaraná que achou encostado ao meio-fio. Alumínio é foda. Se bem que amianto também é, ao seu modo.
 
Enfim...
 
João Aparecido nada sentiu a não ser muito frio. E também não ligou com o barulho das pessoas a sua volta enquanto agonizava e sentia um sangue espesso lhe correr por braços e virilhas indo escoar no bueiro - um bueiro qualquer - já misturado a água da chuva e muita sujeira.
 
Idalina nunca soube.
 
Antes assim.
Gustaalbuquerque
Enviado por Gustaalbuquerque em 08/12/2008
Reeditado em 08/12/2008
Código do texto: T1325336
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