JUANITA ALMÍBAR

JUANITA ALMÍBAR

FlavioMPinto

Uma cama desarrumada com lençóis e cobertores embolados, uma cadeira de palha, um surrado estofado vermelho, um guarda-roupas com portas que não mais fechavam, um computador antigo e um telefone.

Baratas e pulgas disputavam pedaços de pão, comida e espaço nas roupas por todo canto.

Era o quartinho de D.Pepe num velho edifício perto da rodoviária. Abandonado. Triste. Taciturno.

D.Pepe era um bem sucedido camelô da Quadra 5 da Rua da Praia. Sempre "zanzara " por aquela área sendo bem conhecido por todos. Ali se estabelecera após ser demitido como zelador de um prédio tradicional. Lá reinava. Fazia campanha para síndicos, e os demitia com inúmeras fofocas. Além de tudo atritava um grupo de moradores com suas maledicências: os que não lhe davam propinas.

A quadra era sua. Controlava tudo. Optou por ficar por ali para continuar a desfrutar o seu prestígio entre os aposentados do edifício Jezebel que viviam de seus favores e "comiam na sua mão", seus protetores. Desde os flanelinhas até os vizinhos do prédio o respeitavam. Mais pela fama e capacidade de gerar intrigas. Achacava. Intimidava.

Hermon não deixava de passar na estética da Dorotéia para fazer as unhas com Joelma antes do trabalho na corretora. Apaixonara-se por ela.

"- São os olhos azuis mais bonitos da Rua da Praia. Magníficos. Lindos. Insuperáveis".

Na parte da tarde, quando retornava do expediente, já na Oficina de Máquinas, era sagrado despedir-se de Joelma antes de ir para casa.

"... Aqueles olhos azuis...aquáticos...me lembram o mar Egeu. Minha deusa grega".

O camelô não estava na sua banca e a quadra quedava silenciosa como a aguardar algum acontecimento novo. D.Pepe não aparecia no seu ponto bem na esquina da relojoaria a quatro dias. Quem mais notou foi Feliciano, dono do bar Japão, local onde o camelô almoçava. Os fregueses sentiram sua falta e resolveram chamar a polícia. Mas ninguém sabia onde ele morava. Difícil iniciar uma investigação.

A dona da estética começou a notar mudanças no comportamento de Joelma, a travesti loira, alta, de olhos azuis, o amor de Hermon, que trabalha como manicure free-lancer. Tinha acessos de choro até compulsivos e não parava de entrar e sair do prédio. Sentava na escada de entrada, olhar triste e longínquo. Chorava, ria, andava pelos cantos triste e acabrunhada. Mudou até sua aparência vestindo-se com mais sobriedade. Uma mudança radical.

Outro dia foi flagrada balbuciando o nome de uma tal de Juanita. Era Juanita prá cá, Juanita prá lá. E não largava o lenço. Sempre balbuciando e soluçando.

Enquanto isso, cinco dias de falta de D.Pepe, a investigação prosseguia e nada.

A repentina mudança de comportamento de Joelma chama a atenção do delegado Micóstenes, encarregado do inquérito.

Não foi preciso muita força para o travesti, já morrendo de saudade, "entregar" tudo e desvendar-se a trama. Ele tinha um caso com Uélson, motoboy da Oficina de Máquinas Veja, de propriedade de Hermon.

Juanita, sabendo do caso, desgostou-se e foi tomar satisfações com Joelma e Uélson, que jura vingar-se, caso aconteça algo a seu amor. E Hermon, notando a perturbação da sua paixão, prometeu fazer algo.

Juanita era um travesti aposentado conhecido na Salgado Filho e assíduo freqüentador das buates da área antigamente. Achava-se o "rei da cocada preta", ou rainha. Liderava, extorquia e intimidava os travestis. Mas deixou a lida e ficou só no comando quando foi trabalhar como zelador de um prédio na Andradas. " Lá tem um monte de velhos babacas e uns bofes que não me incomodarão. E ninguém me conhece. Tô feito". Dali continuaria a mandar na Salgado. E reinou no edifício até ser demitido depois de muito alvoroço. Teve até liminar na Justiça para impedir a homologação do ato.

A polícia acaba chegando ao desarrumado cafofo de D.Pepe. A porta, toda remendada, é arrombada com facilidade quase se despedaçando.

No quarto, D.Pepe jazia de bruços cuidadosamente colocado embaixo da cama. Parecia um embrulho. Fora brutalmente torturado e asfixiado.

- Crime encomendado, coisa de profissionais, assim se expressou o delegado.

Descobriu-se seu verdadeiro nome numa velha e usada identidade dentro de um saco de papéis no banheiro. Era Valdecir Simoni e natural de Dom Pedrito. Havia ainda uma identidade funcional do Sindicato dos Barbeiros e Afins.

Juanita Almíbar também era o nickname usado num site de bate-papo da sua cidade e identificado pela perícia no seu computador, no qual se comunicava através de "versinhos idiotas", como assim se referiu um internauta anônimo.

Enfim a investigação finda-se: D.Pepe, ou Juanita Almíbar, fora assassinado por ciúmes. Com absoluta certeza.

Do seu passado restava agora a imagem do ex-travesti e gigolô autoritário da Salgado Filho e adjacências, zelador fofoqueiro e intensas saudades dos seus aposentados protegidos e travestis que o cercavam.