A Macieira

Parte 1

Diz-se que no campo não existe imoralidade, que ao ser circundado por um manto verde de folhas e mato, o homem torna-se uma ilha deserta, onde sua personalidade é pura e imaculada, como a de um animal.

Isso é parcialmente verdade, na comparação ao animal: Quando puro, o homem se submete aos seus instintos, torna-se amoral em sua pureza.

Essa franqueza sobrenatural foi a principal causa de um caso violento, porém moderadamente desconhecido, em uma cidadezinha rural no meio do nada, de onde nada parecido havia brotado até então. Diziam os antigos se tratar de uma maldição, porém a cidade era tão pacata e acima de suspeitas que não poderia haver um maldizente. Aquilo brotou de um conflito real e concreto, um estado de mente que se manifestou em uma tragédia.

Tudo foi fruto de uma macieira particularmente grande.

A árvore fatídica, dizem, nasceu da semente cuspida por um assassino, que acabara de desovar sua última vítima na redondeza. Outros dizem que uma alma penada a plantou durante a noite, e existem rumores mais excêntricos que afirmam que a macieira fora fincada como um obelisco do mal, pelo diabo em pessoa. Mas na verdade, era apenas uma macieira bem grande.

Mesmo sendo uma macieira como outra qualquer, exceto pelo tamanho, foi responsável por circunstâncias incomuns, como o caso violento mencionado anteriormente. O Caso Taylor-Brown, como ficou conhecido, foi uma disputa de duas famílias tradicionais, um desentendimento que parecia mais uma história mal cozida de amor e ódio entre famílias rivais. Tudo começou no fim de uma tarde de sábado. Era um dia frio como a maior parte dos dias naquela época do ano, e os integrantes da família Taylor estavam sentados na varanda de sua modesta casa de madeira, tomando chá, olhando silenciosos para a macieira que havia crescido entre a sua casa e a casa dos Brown.

Era um dia cinza, o céu escuro ameaçava cair sobre a cabeça de todos naquela varanda, e trovoadas roncavam na distância. Era um dia enfadonho, triste e carrancudo, a escuridão meio azul, meio cinza inundava as tábuas marrons da varanda, e ninguém dizia nada, apenas admirava a beleza, o tamanho, e as cores das maçãs que se agarravam aos galhos da árvore, lutando contra o vento impiedoso.

- Já viu alguma coisa assim? – perguntou o velho Benjamin, sem especificar a quem.

- Nunca, nunca em minha vida. – respondeu seu neto Joshua, que aos vinte anos já havia visto muitas coisas.

A árvore parecia atrair a atenção, era como um buraco negro, uma concavidade em um plano, que sugava toda a atenção que passasse ao seu redor.

- E quando será que ela foi plantada? E por quem? – perguntou timidamente Chloe, a primogênita do velho Benjamin.

O velho não respondeu de imediato. Fechou os olhos, tomou um gole de chá, jogou seu corpo para trás na cadeira de balanço e pensou um pouco. Depois apoiou seus cotovelos em suas coxas magras e sua cabeça em suas mãos calejadas, e resmungou:

- Não sei. Provavelmente algum pássaro qualquer trouxe a semente no bico.

Mas ele sentia que havia algo de estranho naquela árvore, e ao mesmo tempo em que a temia, a admirava e amava, sentia uma vontade interior de a preservar intacta, de tê-la em seu quintal e brincar nela com os bisnetos que ele logo receberia.

Eram boas intenções, porém um pouco exacerbadas. E o velho Benjamin não sabia que, do outro lado da bela árvore, outras pessoas pensavam exatamente como ele, tinham pela macieira a mesma admiração que o afligia.

E as pessoas da outra família sentavam-se na varanda de sua casa, mas não tomavam chá. Eram os Brown, uma família que fomentava uma rivalidade tradicional com os Taylor. E Archibald, assim como Benjamin, sentava-se em uma cadeira de balanço acolchoada, enquanto fumava um cigarro.

- Já viu alguma coisa assim? – perguntou Archibald, coçando seus cabelos levemente grisalhos e segurando o cigarro no canto da boca.

- Nunca, nunca em minha vida. – respondeu Samuel, que aos vinte e um anos, não havia visto quase nada.

Emily, a irmã de Samuel, estava encostada na porta, segurando a maçaneta com uma mão e com a outra ajeitando seus longos e lisos cabelos loiros, perturbados pelo vento. Ela observava a árvore mas não sentia muita coisa, apenas um sentimento de belo que ela apenas sentia ao olhar para seu amor secreto, Joshua Taylor.

Era um amor proibido, como num livro de romance barato, e isso deixava tudo mais atraente. Às vezes, tarde da noite, corria para a mata fechada ao norte das casas, e mesmo sem saber da travessura de sua amada, Joshua sentia que algo lhe chamava para fora de casa. E corria inexplicavelmente na direção em que estava Emily. E os dois passavam a noite inteira se amando sob a proteção de carvalhos imponentes, onde nem mesmo o ódio das duas famílias podia entrar.

E na manhã, quando Joshua voltava para casa, encontrava seu pai sentado na varanda, o esperando de cinto na mão, pronto para lhe dar outra surra. Mas na verdade, não se importava, o seu amor por Emily deixava seu corpo dormente, mesmo quando sua pele era arranhada, rasgada e golpeada pelas cintadas agressivas de seu pai.

Archibald não punia sua filha, pois sua mãe, que tinha medo que a beleza de sua neta fosse maculada pelo castigo, o proibia. E por isso Emily amava sua avó, e Archibald odiava sua mãe. Mas não tinha coragem de mostrar seu ódio, e desde a morte de seu pai, levava todo dia chá na cama para ela. E, misteriosamente, desde que seu marido morreu, a velha Olivia sempre queimava a boca quando tomava o chá da manhã, outrora servido pelo seu cônjuge amado, agora servido pelo seu filho rancoroso.

Os Taylor viviam em um estado de perpétua frustração, por terem os Brown como seus vizinhos. Diz-se que a casa dos Brown pertencia a uma geração antiga dos Taylor, e que havia sido “roubada” num golpe judicial, que segundo os Taylor era uma falsificação e um roubo, e segundo os Brown, uma “apropriação perfeitamente legalizada”.

Mas a verdade era que as duas famílias se odiavam e haviam se odiado por várias gerações. Era um ódio velado, porém conhecido: as famílias sabiam que existia um grande rancor, porém não o demonstravam abertamente. Pelo menos não até aquela macieira ter aparecido.

A macieira parecia intensificar o ódio. A visão das maçãs, tão perfeitamente vermelhas, trazia uma sensação indescritível, uma emoção tão pura e forte que não era possível compará-la a alguma outra. Era como se o ódio ficasse com inveja do tamanho da emoção trazida pela macieira, e quisesse tornar-se tão grande quanto ela.

As maçãs, parte do pecado original, pareciam voltar às suas origens, corrompendo corações e almas.

Joshua havia se apaixonado perdidamente por Emily. Benjamin e Archibald tornavam-se mais fechados e tristes do que já eram. Olivia amava sua neta e sentia cada vez mais medo de seu filho. William odiava seu filho Joshua, e sentia uma atração descomunal pela sua irmã, Chloe. Emily amava sua avó e seu irmão Samuel, que, por sua vez, só amava sua irmã, e apenas respeitava sua família.

Eram duas famílias instáveis, impuras e imorais, e esse ambiente insuportável havia sido responsável pela morte da esposa de Benjamin e da esposa de Archibald. E parecia que a tristeza queria acabar com os viúvos assim como fez com as esposas. O rosto de Benjamin era cheio de rugas, que aprofundavam-se a cada dia. E o cabelo de Archibald ficava cada vez mais cinza como o céu daquela tarde de sábado. O tarde em que o fim começou.

Parte 2

William Taylor estava distraído a uns cem metros de sua casa, atirando em garrafas de vinho vazias com seu revólver de seis tiros. Ele não conseguia acertar, tamanho era o seu nervosismo, que se devia a dois fatores: o primeiro era que ele tinha flagrado Joshua voltando para casa pela manhã, com um sorriso ridículo na sua cara, que continuou lá enquanto era açoitado a chicotadas. E o segundo era desconhecido, ele sentia que algo muito ruim, de grande porte e grandes conseqüências aconteceria naquele dia.

Toda hora que o rosto de seu filho vinha à sua mente, ele atirava e errava, porque sua mão tremia e ele fechava os olhos para pensar em outra coisa. Mas quando o fazia, só pensava no seu mal pressentimento, e a sua mão tremia mais ainda. Sua vida o enchia de desgosto e ele sentia vontade de encostar o cano da arma em sua cabeça e se suicidar ali mesmo, mas sentia que tinha o dever de “educar” seu filho, o afastar dos Brown, e preservar sua irmã imaculada, até o dia que a desvirginasse.

O sol brilhava por trás de nuvens grossas e cinzas, que pareciam feitas de chumbo, e que bloqueavam a luz de tão densas. A tarde fria, com vento forte, azul e cinza, o levava a uma depressão controlada, algo que lhe agradava por um motivo desconhecido. Sentia-se aliviado por não ver a luz do sol, achava que ela servia apenas para julgá-lo, expor o que ele tentava, a grande custo, guardar dentro de si.

Terminou de descarregar o revólver, e enfiou a mão no bolso, para pegar mais munição. A textura lisa e polida da ponta de chumbo o lembrou por um instante a maçã que ele havia arrancado da árvore e comido. E a sensação de atirar e quebrar uma garrafa ao meio o lembrou por um instante da vontade que ele sentiu de partir a cabeça de Archibald ao meio com um tiro, após ter comido uma das maçãs. E ele sorriu, como havia sorrido naquele momento. Levantou a arma, e enchendo seu peito de ódio aos Brown, atirou e quebrou outra garrafa.

Na casa, Joshua olhava nervoso para a árvore, como já era de costume. Todas as tardes de alguns meses até então haviam sido nubladas, enfadonhas, frias e tristes como aquela, e a família Taylor ficava em casa, olhando para a macieira, ao invés de ir trabalhar a lavoura. Mas Joshua tinha um outro motivo para estar nervoso: naquela noite ele fugiria novamente para a mata de carvalhos com Emily. Ele já o tinha feito várias vezes, mas dessa vez se sentia nervosíssimo, como se fosse a primeira vez. Mas estava com mais vontade do que nunca, e olhava nervosamente para a casa dos Brown, tentando procurar Emily.

Emily estava encostada na porta, segurando a fechadura nervosamente e ajeitando seu cabelo mais do que devia. Estava claramente nervosíssima, e se não fosse pela macieira, Archibald e Samuel já teriam notado, e seus planos poderiam ser frustrados. Ela olhava a árvore, e nela via algo que não sabia explicar, era como um alerta, mas ela não sabia para quê.

- E quando será que ela foi plantada? E por quem? –perguntou Emily, tentando puxar assunto, nervosamente.

Samuel olhou para ela, com uma cara de quem não se importava com a pergunta, e redirecionou seu olhar indiferente ao seu pai. Archibald, por sua vez, não disse nada, e deu outra tragada no cigarro.

Emily já estava acostumada a esse tipo de comportamento, e apenas saiu da varanda, e caminhou uns vinte metros na direção da macieira. Sentiu-se compelida a andar mais, porém quando chegou mais perto, de um lado os Taylor se irritaram, e do outro, Archibald gritou algo ofensivo que Emily não entendeu, mas soube que era pra voltar para casa. Abaixou a cabeça, deixou uma lágrima cair, e voltou à varanda.

Quando chegou, seus cabelos não tamparam seus olhos, e seu pai notou a lágrima que descia. Archibald sentiu um ódio profundo, algo reprimido, contido e velado, que não podia ser solto. Não precisou dizer mais nada para mandar Emily para dentro, ofensivamente. Apenas com o olhar ele descarregou uma quantidade incrível de ódio nela.

Samuel assistia a essa cena passivamente, apenas observava as reações de sua irmã e de seu pai, pois nada poderia fazer sem correr risco de ser espancado. Dona Olivia veio até a porta e disse em tom triste que era hora de jantar. Archibald se levantou, jogou o cigarro no gramado, e com um movimento da sua mão pesada, mandou seu filho entrar em casa, olhou para a macieira por mais um instante, e entrou.

Dentro de casa, os Brown se reuniram em volta de uma mesa de madeira polida, com um acabamento impecável. A hora do jantar era um dos únicos momentos em que a família se unia naturalmente, era uma tradição. Archibald sentou-se na cabeceira da mesa e esperou mudo sua mãe servir-lhe uma porção de arroz com batatas e carne assada. Todos encheram seus pratos e deram a primeira garfada em silêncio. Olivia tentou criar assunto:

- Já faz um tempo que não vemos sol. Como vai a lavoura?

Archibald levantou os olhos, colocou uma garfada de comida na boca e abaixou novamente os olhos.

- Pois bem, amanhã eu irei até a cidade, quero saber notícias de lá, faz tempo que eu não vou.

Dessa vez ninguém nem olhou. Ninguém estava interessado, nem mesmo Emily, que estava pensando demais em si mesma e como queria que sua vida mudasse. Os pensamentos de Archibald e Samuel estavam pendurados na macieira como seus frutos. E até mesmo Olivia não se interessava pelo que estava falando, tinha sua mente dividida entre a árvore lá fora e o medo que tinha de seu filho.

Enquanto isso os Taylor, ainda sentados na varanda, ouviam os sons do revólver de William e bebiam chá.

O velho Benjamin se levantou com dificuldade, e resmungou:

- Os Brown entraram. Devem ser oito horas.

Aquelas palavras fizeram Joshua suar frio. Oito horas! Faltavam apenas quatro horas para a sua aventura com Emily, e a cada minuto que passava, a pressão em seu peito aumentava, tinha a impressão de que ia explodir por dentro. Benjamin entrou em casa com dificuldade, sentou-se em um sofá largo e macio na sala, e se cobriu com uma manta que estava no chão. Mas não deixou de olhar a árvore, até o momento em que isso tornou-se impossível pela escuridão da noite. E o velho dormiu, mas Joshua continuava na varanda, com sua tia.

- Eu sei o motivo de seu nervosismo, garoto. – disse ela em um tom solene e confortador.

O rapaz ficou pálido, por um momento achou que seu segredo havia sido revelado. Sua boca entreaberta fechou-se e o rubor voltou a sua face quando ele notou no sorriso de sua tia. E ele sorriu junto.

- É loucura, não é? – perguntou Joshua.

- Sim. Mas não é a primeira vez. – acrescentou. – e disso eu sei.

O rapaz riu, e se levantou. Deu três passos largos para a frente, viu que seu pai estava atirando em alvos imaginários, e que seu avô dormia um sono pesado, e sentiu-se livre para confessar-se a sua tia.

- Eu amo ela, tia. Amo mais do que qualquer coisa nesse mundo.

- Você não tem muito o que amar nesse mundo. – respondeu ela em um tom triste.

- Tem razão. Minha vida me tratou mal, eu nunca senti prazer real em viver. Até que...

Olhou para sua tia, e ela compreendeu o que ele quis dizer.

- Que bom, filho. Fico feliz em saber que achou uma razão na vida. Conte com o meu apoio hoje, mas saiba que eu tenho um mal pressentimento.

O coração de Joshua acelerou e ele suou frio por um instante. Ele também pressentia que algo ruim aconteceria aquela noite. Mas ele não queria desperdiçar aquele momento por uma mera superstição.

- Isso não importa. O que importa é que hoje eu verei minha Emily. Ela é a minha vida, e nada, nenhum sentimento vai me fazer voltar atrás.

Chloe sentou-se no primeiro degrau da escada para a varanda. Passou as mãos pelo rosto, e em tom aflito deixou escapar um gemido de angústia. Joshua sentou-se ao lado da tia, passou um braço pelos seus ombros e a abraçou.

- Obrigado.

Ela sorriu, e não disse nada. Amizade não se agradece, se retribui.

- Fuja, Joshua. Fuja, vá viver com ela longe daqui, você não tem que agüentar isso tudo. Você é um bom rapaz e não merece essa vida.

- Eu não vou sem você, tia. Você e Emily são as únicas pessoas que importam pra mim nesse mundo.

Chloe sorriu.

- Você sabe que eu não posso. Você sabe que se eu for contigo teu pai vai nos caçar até nos encontrar, e só deus sabe o que ele faria conosco se nos encontrasse depois de uma fuga.

- Mas nós podemos nos esconder, ele nunca vai nos achar se formos para bem longe. Podemos viver nós três, eu, você e a Emily.

Chloe riu da inocência de seu sobrinho.As coisas infelizmente não eram tão fáceis como ele achava. William Taylor era modestamente influente fora de sua casa. Pelos seus contatos, ele poderia encontrar sua irmã e seu filho com facilidade.

Joshua abaixou a cabeça e sentiu-se inconsolável por saber que nunca poderia viver a vida de seus sonhos, cercado por todas as pessoas com quem ele se importava. Mas ao mesmo tempo sentiu uma certa alegria por saber que dentro de sua casa havia alguém em quem poderia confiar, para tudo que fosse necessário.

Nesse momento, os tiros de William cessaram, e os dois que estavam na varanda sabiam que era hora de entrar.

-Vamos, seu pai está voltando.

Joshua se levantou e entrou. Chloe olhou para a macieira, sentiu um pouco de medo, misturado com raiva, e foi entrando, mas foi surpreendida por William, que a agarrou pela cintura, “brincando” como sempre. Ela sabia o que ele pretendia com as suas brincadeiras, e fingia um riso, ao mesmo tempo em que queria castrá-lo.

Ela já estava acostumada a ser apalpada, agarrada, assediada, tudo por “brincadeira”. Já estava até acostumada a, durante a madrugada, ouvir William abrindo a porta de seu quarto, e fingir que estava dormindo apenas para observar a cara nojenta de seu irmão, olhando seu corpo. Mantinha uma faca embaixo do travesseiro, caso algum dia o desejo de William falasse mais alto que a razão.

Benjamin estava dormindo, e ninguém queria acordá-lo, temendo um ataque de ódio do velho. Então William ficou no andar de baixo, foi comer alguma coisa antes de ir dormir, e Chloe subiu com Joshua e cada um foi para o seu quarto. A tia foi dormir, e o sobrinho foi rezar, para que tudo desse certo naquela noite.

Tão logo William subiu e entrou no seu quarto, Joshua começou a suar frio novamente. Andava de um lado para o outro no seu quarto, pensava, falava sozinho, coçava sua cabeça ansiosa. As horas passaram, ele olhou no relógio,e viu que já era meia noite. A hora havia chegado.

Abriu furtivamente a porta, e desceu lentamente as escadas, tomando cuidado para não fazer barulho e para não pisar nos pontos que rangiam na escada de madeira. A última coisa que Joshua poderia querer naquela noite seria um flagrante de seu pai ou de seu avô.

Passou pela sala, e seu avô ainda dormia, iluminado pelo fogo da lareira. Deu mais uns passos até a porta, a abriu lentamente e trancou ao sair. Estava livre, e uma onda refrescante de alegria o invadiu. Correu sorrateiramente até se afastar dez metros de sua casa, quando então olhou para trás, e viu sua tia sorrindo na janela. Sorriu, acenou, e foi correndo até a macieira, para pegar uma maçã para sua amada.

Quanto mais se aproximava da macieira, menos alegre se sentia, quase ao ponto de desistir de sua aventura. Quando arrancou a maçã mais suculenta, vermelha e bonita, sentiu um choque dentro de si, um golpe sutil, e viu que algo de ruim o esperava no futuro. Era como se a árvore quisesse dizer alguma coisa para ele. Ignorou o aviso metafísico e correu freneticamente para o meio dos poderosos e imponentes carvalhos.

Chegando lá, encontrou sua amada, deitada sobre a relva, sorrindo e esperando por ele.

Parte 3

Foi a melhor noite de suas vidas. Fizeram amor a noite toda, rolaram pela relva, mais apaixonados do que nunca. Aquela parecia a primeira vez, era como se tudo que acontecera antes daquele momento fosse um sonho, e que ele tivesse sendo concretizado ali, em meio aos carvalhos. Ao olhar para Emily, os olhos de Joshua brilhavam, pois via nela a representação viva do amor, sua Afrodite, a sua primeira, única e maior paixão de toda sua vida.

Os dois se amaram a noite toda, mas havia no ar uma sensação ruim, um tipo de mau presságio, que impediu que eles aproveitassem completamente seu momento juntos. Joshua deu a maçã para sua Julieta. Ela sorriu e a mordeu com satisfação.

- Somos pecadores. Mordemos a maçã. – disse, com a boca cheia, em um tom risonho.

Os dois riram, e se deitaram, nus, sob a luz da lua, que lutava para abrir caminho em meio às folhas das árvores que cobriam os dois amantes.

- Vamos fugir, Emily. Vamos viver juntos em um lugar longe daqui, vamos ter filhos e uma família de verdade.

Emily sorria, ela queria se entregar completamente nos braços de seu amante. Era tudo que ela queria, fugir com ele, viver com seu amor em um lugar distante. E continuava sorrindo, pensando na vida que teriam juntos, na perfeição de tudo, como tudo seria um sonho, viver ao lado de seu amado, com uma família que a ama e que ela ama, longe do ódio reprimido do seu pai, do amor amedrontado de seu irmão, do temor sobrenatural da sua avó pelo seu pai, da rivalidade estúpida com os Taylor.

Tudo parecia perfeito, lágrimas corriam dos seus olhos, e Emily disse, no tom mais apaixonado do mundo:

- Quero, eu quero ir contigo, quero viver ao seu lado, quero ser sua por todo o resto de nossas vidas.

E eles se beijaram, rolaram pela relva, e passaram maravilhosos momentos juntos, repetindo declarações de amor apaixonadas sob a luz da lua.

E naquele momento, Archibald pressionava os dentes, sentia que o caminho para castigar sua filha estava livre, que ele podia soltar tudo que tinha reprimido dentro de si. Levantou-se, apanhou um rifle de caça, trancou a porta do quarto de sua mãe pelo lado de fora, e sentiu uma onda de felicidade por dentro de si, um alívio incrivelmente grande. Sentia que naquela noite resolveria todos os seus conflitos interiores, toda a raiva que tinha seria liberada, e ele seria finalmente livre.

Disparou pela porta, e Samuel, que ouvia tudo do quarto, sabia que sua irmã corria perigo, mas a submissão não deixou que ele tomasse qualquer tipo de atitude, exceto a de se levantar, trancar a porta de seu quarto, voltar à cama, e cobrir sua cabeça com o travesseiro de penas.

Archibald andava em passo apressado e pesado pela relva orvalhada, e o frio da noite o açoitava, mas nada abalaria sua força de vontade naquela noite fatídica. Ele já sabia que sua filha se encontrava com o primogênito Taylor na floresta de carvalhos, mas até então, não havia criado coragem para tomar uma atitude. Hoje a macieira havia dito para ele que a hora havia chegado. Que sua filha tinha que ser punida por seus pecados, por sua traição à honra da família Brown.

Enquanto isso, os dois amantes, completamente ignorantes do seu destino, se amavam sobre a relva, satisfeitos com seu amor, mas não com suas vidas familiares. Parecia que a maçã que Joshua havia trazido aumentara a volúpia dos amantes, eles dividiam o calor de seus corpos em um abraço apaixonado, deitados no chão.

E Archibald pisava na raiz do primeiro carvalho da floresta. O rifle parecia latejar em sua mão, ou então era o seu coração tentando se livrar do corpo, tentando estourar o peito do pai cuja filha havia sido desonrada.

E em um momento de pânico infinito, os amantes nus viram, espantados, um homem grisalho, ofegante, com um rifle de caça apontado para seus corpos unidos.

- Desgraçada! Vagabunda! – seus lábios trêmulos só conseguiam soletrar insultos, gemidos e resmungos de ira.

Emily chorava compulsivamente, não por ofensa, não por vergonha do pai, mas com medo do que o homem descontrolado faria com ela e com seu amante. Joshua a segurou atrás de si, colocando seu corpo entre Emily e seu pai descontrolado.

Archibald não estava interessado em Joshua, ele era apenas uma parte do pecado que sua filha cometera. Empunhou o rifle e deu um tiro certeiro em seu peito, que atravessou seu coração. Joshua caiu morto no chão, e a bala que atravessara seu corpo acertou o ombro de Emily, que caiu para o outro lado, em estado de choque, chorando compulsivamente.

- Vagabunda! Vagabunda! – era tudo que Archibald gritava para sua filha, ele não tinha palavras para demonstrar sua angústia, a não ser insultos aleatórios.

Emily não conseguia chorar, de tão chocada que estava. Arrastou-se até seu amado, e por um momento, ficou sem reação, sem saber o que fazer. Passou as mãos pelo seu rosto sem vida, ainda quente, e então, ao não ver nenhum esboço de reação, caiu na realidade e a dor da morte de seu amado lhe atacou como se uma lâmina incandescente fosse atravessada no seu coração. Gritou, gritou como nunca havia gritado, chorou como nunca havia chorado, e viu seu futuro dos sonhos se desfazer perante seus olhos.

E seu pai não tinha nem um pouco de pena, sentia uma satisfação enorme em ter dado a sua filha o castigo máximo, a pena por todos os seus crimes e traições. Sentia que estava em paz consigo mesmo, e que toda a raiva que tinha morria como aquele jovem rapaz de vinte anos.

Mas a sua filha não havia aprendido, ela ainda chorava a morte de seu amor, não queria se libertar das correntes que a prendiam a sua vida antiga, não queria viver a vida que ele havia planejado para ela, sob seu punho firme, obedecendo a suas vontades, como uma boa filha.

- Vamos para casa, sua desgraçada. Agora nem a tua avó vai te salvar.

Ela se recusou a ouvir. Archibald sentia cada vez mais raiva, tudo que ele sentiu antes de acabar com o romance de sua filha estava voltando, perante a insubordinação dela.

Os gritos dela o tiraram do sério, e com outro tiro de rifle, ele a silenciou de vez. Os dois corpos jaziam mortos, juntos, sob a proteção de carvalhos.

Archibald ficou paralisado. Deixou seu rifle cair, suas mãos paralisadas pelo desespero. O que ele havia feito? Havia assassinado a própria filha. Havia transcendido o mal, havia se tornado um monstro, algo que ele nunca havia pensado. E não podia explicar as próprias ações, era como se houvesse outra coisa o controlando por dentro.

E ele sabia que havia sido a macieira. Olhando para ela ele havia sentido seu ódio ampliado, seu ódio pelos Taylor e pela sua própria filha haviam sido transformados em algo animal, um instinto assassino irracional, que o dominara e fizera com que ele matasse sua filha num ato indescritivelmente vil.

Ele começou a correr em direção a sua casa, com lágrimas correndo pelo seu rosto, se confundindo com gotas de suor que desciam de sua testa franzida, em uma expressão de tristeza, ódio e confusão infinita. No seu frenesi, perdeu o caminho para sua casa, e corria desgovernado pela floresta, sem saber a direção que ia.

E assim, vagando agitado entre carvalhos, passou algumas horas, até o nascer do sol. Estava amanhecendo quando Archibald conseguiu chegar até sua casa, e a primeira coisa que fez foi ir até o casebre em que guardava ferramentas. Em sua vista embaçada, distinguiu um machado, de lâmina larga o suficiente. Pegou-o com mãos trêmulas e nervosas, e tomou uma decisão.

Foi correndo em direção à macieira, com o machado em suas mãos. Desferiu o primeiro golpe em uma linha vertical, um golpe apenas agressivo, um ataque irracional. Depois tentou em vão acertar o tronco da árvore de modo que o cortaria ao meio, mas estava tão descontrolado que seu machado só cortava o ar, ou acertava o cabo no tronco.

Nesse exato momento, William Taylor abria a porta da varanda de sua casa, e preparava seu cinto de couro para açoitar o seu filho rebelde. Mas a visão do patriarca da família rival, de machado na mão, tentando cortar a macieira que ele tanto amava e admirava mais do que a qualquer coisa no mundo, o deixou descontrolado. Era como se a árvore pedisse socorro em seus pensamentos.

Encostado na parede do lado da casa, estava um machado, mais ou menos parecido com o de Archibald. William o pegou com toda a vontade, e correu descontrolado em direção a seu rival, que conseguia naquele momento, com um esforço de mente enorme para manter o auto-controle, desferir um golpe certeiro no meio do tronco da macieira. O machado afundou até além da metade do diâmetro da madeira, e uma satisfação estranha dominava Archibald, que ao atacar a macieira sentia como se estivesse vingando a morte de sua filha, como se a árvore fosse a assassina, e ele, apenas a arma.

O velho Benjamin levantou-se do sofá e foi até a varanda, atraído pelos raios de sol que não via há muito tempo. O sol se levantava no horizonte, fazendo brilhar as gotas de orvalho que se haviam acumulado por cima da grama na madrugada. O velho abriu a porta da varanda, sentou-se na sua cadeira, e notou movimento a uma certa distância da sua casa. Tirou do bolso o óculos, e colocou, para ver uma cena absolutamente horrível acontecendo sob os galhos da belíssima macieira: com um golpe certeiro de machado, William degolou Archibald.

Benjamin levantou-se num pulo, usando forças que ele julgava perdidas com o tempo. E ele havia julgado bem, pois não as tinha mais. Dez metros de corrida depois, um enfarto fulminante o atirou morto ao chão.

William sorriu, havia defendido a árvore, que ele considerava como sendo seu patrimônio. O agressor estava no chão, seu corpo para um lado, sua cabeça ensangüentada para outro.

Sentia-se realizado, como se sua missão nesse mundo houvesse sido cumprida: havia defendido a nova razão de sua vida, a macieira belíssima que, mesmo com seu tronco quase decepado, mantinha-se em pé, como um obelisco, um monólito que dominava os pensamentos de todas as pessoas impuras que a cercavam.

Estava genuinamente alegre, e não queria que qualquer coisa acabasse com sua alegria infinita. Ali, sob os galhos da árvore, sacou seu revólver de seis tiros, colocou-o em baixo de seu queixo, e puxou o gatilho. Havia se suicidado para agradar a sua mestra, tão imponente e forte.

Não havia mais ódio naquele lugar, tudo que existia de rancoroso havia sido consumido pela macieira. Pela sua amplificação, o ódio havia consumido a si mesmo. A árvore havia cumprido sua missão de paz, e o sol voltou a brilhar sobre as duas casas. Era irônico, que a mesma árvore que havia fornecido o fruto do pecado original havia, pelo próprio pecado e iniqüidade, acabado com o ódio entre duas famílias.

Mas a sua origem nunca foi revelada. Tão misteriosamente quanto o seu aparecimento, foi a forma com que ela secou no mesmo dia em que o ódio morreu naquele campo verdejante. Rumores se espalhavam pela cidade como rastilhos de pólvora, e surgiam milhares de teorias sobre a origem satânica, divina, natural ou sobrenatural da árvore fatídica.

Mas na verdade isso tudo não importava, era apenas uma macieira bem grande.

Luiz Gabriel da Silva Conforto
Enviado por Luiz Gabriel da Silva Conforto em 27/04/2005
Código do texto: T13366