O OUVIDO DO PETELECO

O OUVIDO DO PETELECO

FlavioMPinto

Baltazar ainda estava eufórico com o que vira na Europa em viagem prêmio á sede de sua agência de publicidade na França. Aproveitou para dar um pulo na Itália, Holanda, Bélgica, Tchecoslováquia, Portugal e Espanha. Invés de 30 ficara 60 dias. Um giro e tanto. Não queria mais voltar.

- Quanta educação, quanta limpeza, quanta ordem, respeito.. murmurava sem parar.

Marilda só olhava e concordava com um olhar de desconfiança como a dizer "... quem te viu, hein?...".

- Marilda, não vi nenhuma pixação, sabe. Nenhuma greve. Nenhum piquete. Que coisa linda esse monumento! Exclamava

- Mas que merda de país nascemos e moramos, hein? Porquê lá não podemos ter tudo igual, nem que seja limpo, ordenado, bonito como aqui? O que temos de bacana é só a natureza, mais nada. Ou seja, só o que Deus nos deu. Nada do que fizemos é bem cuidado, respeitado, conservado, que merda! Maldita hora que ganhei esse prêmio. Não deveria ter visto isso aqui. Eu merecia morar aqui. Podemos sair à hora que quisermos e como, sem perigo de assaltos...

- Morar aqui? Não disseste sempre que aqui era a meca do capitalismo decadente e seu sonho era ver isso ruir?

As palavras de Baltazar não encontravam eco no que constantemente pregava e fazia no sindicato e no partido. A ida á Europa balançara sua cabeça e fritara seu cérebro.

Quando retornou, maravilhado pelo esplendor da vida européia, queria mudar tudo.

Dia quente. Nublado e sem garoa. Chato até para os padrões paulistanos. E Liane não chegava em casa. Já era hora e nada.

Saia da faculdade, almoçava no bar do Beto, depois para o cursinho onde era auxiliar na administração e à tardinha, casa. Era sua rotina.

- Baltazar, a Liane não chegou?

- Não, querida, ainda não.

- Aonde foi essa menina? Já escureceu e são oito horas! Vou telefonar para o Peteleco.

O namorado também não sabia o destino da moça , tanto que aguardava um telefonema para confirmar um cineminha á noite. Pensavam até que acontecera um seqüestro relâmpago. Peteleco, ou Jorge Simão, era um figuraço: não trabalhava muito menos estudava, fazia um pouco de tudo. E mal. Não tinha emprego, claro, 25 anos andando de skate , vivendo nas costas dos irmãos e fins de semana, diga-se de sexta a segunda-feira, instalava-se na casa de Liane. Fazia de tudo pela namorada. E não fazia nada. Era o parceiro da cerveja do Baltazar e de passar roupa de Marilda. Um companheiraço.

A família continuava em polvorosa. Nada de notícias. Peteleco continuava tranqüilo. Impassível. As preocupações não eram com êle.

Liane surge, tristonha.

Chegou dizendo que ficara os dois dias na casa da Kaxlane, sua amiga, e que o Peteleco sabia. Chorara a rodo. Estava com os olhos vermelhos e inchados de tanto chôro.

- Pai, caiu a minha ficha. Aquelas reuniões na casa da professora nada mais eram do que lavagem cerebral pura. E eu caí, assim como todos, como patinhos carentes. Bem fazia o Peteleco que só ficava bebendo e não participava das discussões. Ainda bem que acordei.

- Eu sempre te disse isso, filha. Não acreditavas e me criticavas. Que bom que voltaste á razão.

- Eles não me enganam mais, pai, chega de ser marionete e estúpido nas mãos daqueles bandidos e daquela professora bandida.

- Bandidos, filha?

- Sim, bandidos, pois assassinam a pessoa que existe dentro do outro. Matam a consciência neutralizando o que se tem de melhor: seu livre arbítrio, sua liberdade de pensar. Vira-se um fantoche. E logo vem a fatura a ser cobrada. Quando comentaram que queriam me mandar para um curso no Chile foi que caiu a minha ficha. Propuseram até que o Peteleco fosse junto. Tudo pago. E eu nem era formada. Ele então...

Liane também lembrava da intensa doutrinação marxista na faculdade, principalmente na matéria de História da Economia e no cursinho que trabalhava.

- Estão tirando as poucas ferramentas que eles (os alunos do cursinho) possuem. São uns babacas. Uns ignorantes que acham que sabem tudo. Uns postes. Uns reis do sabe nada. Ainda vou acertar as contas com aquele professor amanhã mesmo. Não vou deixar barato, falava numa intensa e crescente revolta.

- Minha filha, faça como o teu irmão: não vá contra eles, pois só tu serás prejudicada. Faça o que eles querem, só para tirar grau na prova e não aceite o que eles passam. Podes perder o ano. Sabes como eles são mesquinhos!

- Pai, se fizer como o César, eles continuarão mentindo, deturpando, enganando a seu bel prazer, sem ninguém para se opor. Algumas matérias vou estudar por conta própria. Só evolui quem sai dessa pregação.

- Liane, minha filha, se tivesses dado atenção, principalmente o que tua mãe sempre te disse, a coisa seria diferente. Veja a minha situação agora. Depois também que caiu a minha ficha, veja só, naquela bendita, ou maldita, reunião no partido, deixei de ser palhaço e joguete. Hoje, e até acabar minha função, só faço o essencial. Mais nada e até lá vou levando o barco. É isso aí. Como pode aquele professor, não é aquele da faculdade, dizer que "... Não existe saber maior ou menos e sim saberes diferentes..", quando tratávamos do ensino nas escolas. Para ele, tirar 10 ou zero é a mesma coisa. Como pode? Isso é cada vez mais transformar a ignorância em forma de saber. Então muito bem, não sei nada e outro estuda muito e sabe tudo e tudo bem. Pára com isso! Aí entendi como pode a ideologia interferir de modo nefasto no ensino. Não preciso te dizer que quase saí no braço com tal professor. Conheço professores do partido que literalmente fritaram o cérebro dos seus alunos e construíram sua ignorância. Foi premeditado. Mas não te preocupes. O Peteleco já me contou que...

- O quê, o Peteleco te contou o quê?

- Então não sabes que ele me faz um relatório depois de cada ida na casa da professora? Ele tem um ouvido bárbaro. Ouve até quem fala no telefone! Não sei quem ouve melhor, ele ou o Bilú( o cachorro).

- Por isso que ele ficava todo tempo dormindo ou bebendo.

Baltazar estava satisfeito. Sentia que havia ganho um prêmio maior do que a Mega Sena. Já achava que havia perdido sua filha para aquela professora ex-terrorista e culpava-se por sua omissão. Uma vez por mês , a filha e o namorado, passavam o fim-de-semana numa granja da professora em Imbituba.

Foi tomar uma cerveja na cozinha. Chegando lá, o Peteleco já estava com uma aberta esperando.

- Pois é, sogro velho, por causa daquelas coisas, eu, no meu caso, desisti da vida ante essa sociedade caótica que estamos vivendo. Vivo preso em casa! Violência, violência, violência. E os bandidos soltos. Os alunos não respeitam nem as professoras, os ladrões de colarinho branco todos soltos, o judiciário ás voltas quadrilhas comprando e vendendo sentenças, até quando? Todo mundo mentindo, falseando. Não se pode confiar em ninguém. Desisti. Não quero me formar em nada. Quer com ou sem colarinho?

- Mas como, Peteleco, tens que te formar em alguma coisa, nem que seja um emprego, mas estudar é a base. Trabalhar também.

- Estou bem assim. Vou levando a vida. Me formar prá quê?

- Uma pergunta, Peteleco, porquê não nos falaste que ela estava na casa de Kaxlane?

- Ora, não queria incomodar. Estavam todos preocupados.

- Preocupados com ela, claro! Como podes ser tão desligado?

- Tudo bem, sogro velho, tudo bem! Numa nice, tudo bem.

- Vou ver como ela está agora.

- Ih, filha, tudo bem?

- Claro, agora está tudo bem.

- Uma pergunta, filha, a professora, onde anda?

- Levou uma surra da mãe da Macarena e não sai mais da granja. Deve estar criando galinhas. Pai, aproveita e manda o Peteleco embora daqui.