CLARICE

Era uma noite úmida de temperatura baixa onde absor-to figurava sob meus pensamentos a imagem de minha deusa cra-vejada por diáfanos desejos... inquieto percorri tavernas e embriaguei-me com o dionisíaco néctar que pôs-me a pensar em suas curvas dadivosas, esgueirando a frêmita subserviência deste súdito que, como reles espectro, perambula com seus o-lhos em busca da escultura capaz de acalmar todos os espíri-tos maldizentes que em vão carrega.

Após muito caminhar pelas esquinas obscuras do silên-cio deitei-me à relva e pus-me a pensar, porém aglutinado pe-la vã e insípida busca cai em sono profundo transcorrendo as-sim distúrbios do subconsciente que, ingrato, não descansa.

Sonâmbulo perambulei pelos vales encantados e sonha-dores em busca da fada que despertasse-me do sono, percorri florestas de calvários, escalei penhascos, lutei leões, relu-tei perante o riacho transparente que corria diante meus pés sujos, curvei-me em sua margem e assisti aquela imagem pai-rar diante meus olhos prescritos e carregados de fome e se-de...

Desdobrei fulminante golpe em sua correnteza pois a imagem que pairou-me sobre as vistas não era real, demasiada-mente cansado abracei-me em suas pedras... perguntei aos pei-xes que ali passavam se a conheciam e eles responderam-me... Clarice?... Clarice?... solucei-me em desalento e indaguei ao caranguejo e ele respondeu-me... Clarice?... Clarice?...

Pulei às águas geladas do insucesso e nadei por dias e dias em sombrio desassossego de minh’alma... clamei aos céus que despertasse-me desse encanto... pensei vender a al-ma ao diabo por um naco de saudade a menos e de mensura que acalmasse meus olhos pesados e inermes... e em vão atirei-me aos céus batendo os braços descoordenados na perspectiva se-rena de pairar sobre a janela ao raiar do sol de uma manhã de abril... e então tombei indubitavelmente feliz...

Ah, mas mesmo céptico e ateu clamei joelhos: Deus... Deus... dai-me um segundo só os olhos da mulher morena e dois segundos os lábios do seu beijo... e por três segundos o frescor do seu abraço em laços devassos de amor, suor e braços... então Deus chamou-me em consciência e embalou-me dentre a insanidade em que vivia...

Retornei ao sono novamente e em meio ao sonho ela apareceu em vestes de vermelha seda, estava sentado à caçada almejando que seus olhos olhassem para meus olhos... pediu-me que falasse do meu amor e respondi: ... ah, tu mereces to-da a poesia do mundo e meus versos são demasiadamente peque-nos para cantar tua beleza... então ela abraçou-me e seus lá-bios ansiaram em tocar os meus lábios e seu corpo tremeu ao sentir o meu corpo e o seu calor almejou em juntar-se ao meu calor... mas de repente desapareceu seu semblante à frente e a sua imagem ofuscou-me a vista e então já não sabia onde es-tava e novamente caí de joelhos e clamei... Clarice!!... Cla-rice!!... Clarice!!... borbulhava o meu amor em frenética a-drenalina, meus bíceps e tríceps procuravam uma sereia para amar e só encontravam vento, então perguntei-lhe se havia visto a aura de minh’alma e o vento assobiou.

Relutei desatinado pelo sonho, e agora um pouco mais crente caí de joelhos e clamei Deus... Deus... dai-me o bei-jo da mulher sonhada... agucei meus ouvidos e nada ouvi, o-lhei para minha consciência e a mudez insólita questionou-me em silêncio carrasco... então o sonho virara pesadelo e ten-tei pular pelas paredes do meu corpo para onde o corpo já não fosse mais meu corpo e sim um pássaro livre a voar por descampados onde teria mais facilidade de buscar a deusa da minha loucura e submissão...

Tornei sonâmbulo às pedras que em vão havia sonhado, então uma onda acordou meus sentidos e ao voltar à realidade ouvi o som dos seus passos e sua imagem figurou e desapare-ceu em frações de segundos... não sabia onde estava, porém em meu subconsciente sussurrava o seu nome __ Clarice... Cla-rice... __sussurrei então... e em vão condenei a natureza febril dos homens e almejei o juízo em lânguida e esguia chibatada temperada a fogo... e insano confessei meus peca-dos a todos que ali pudessem me ouvir... e afônico atentei meus gritos a invadir seus ouvidos __ Clarice eu te amo... Clarice eu te amo... __ mas minha vós não propagava-se no vácuo existente em mim...

E toda beleza que ali existia transformou-se em ódio e rancor, assim atirei-me em passos largos procurando a natureza amorfa que combinasse com meus sentimentos rancorosos e senis... então avistei uma fábrica e aquela ima-gem cinza encaixou-se com meus chaminés exalando toda a misé-ria remoída nas lástimas do homem sem brio... minha tez sor-riu e pensei fundir meu coração para que jamais houvesse sen-tido para mim a palavra Clarice... Clarice...

Arranquei aquele órgão famigerado mas seu nome soou-me à mente... desdobrei golpes contra as paredes do meu nexo mas sua imagem pairou sobre meus olhos... fechei-os instanta-neamente mas seu nome soou em meus lábios... então joguei-me à caldeira para acabar com meus lamentos, senti-me corroendo e assim comparei em devaneio todo aquele calor com o teu calor e se o teu calor fosse igual àquele calor o teu calor seria como o calor do sol.

Ah mas em meio ao fogo surgira a tua sombra e teus braços chamaram meus braços e meus dedos tocaram nos teus dedos e neste simples toque o fogo já não mais ardia porque ardia mais em mim a paixão que toda e qualquer queima-dura; senti meu coração regenerando e percebi meus ferimen-tos cicatrizando e abri meus olhos e lá estavas tu... em minha frente... com teu desejo voraz de sucumbir-me aos teus pés... mas não __ beija-me, disseste __ não, não, recusei-me...

Percebi assim que a minha morte não era tua ausência e sim aquela subserviência frente a tua vivacida-de... e que o meu desejo não era unir-me ao teu desejo e sim alimentar minha vaidade que aos poucos destrói todo o laço de serenidade que envolve seus olhos ao seu olhar... e que a tua virtude unida ao meu desvirtuoso caminho trancafiaria to-da tua beldade por trás de teu semblante...

Virei-me afinal a passo por passo voltando pelo mesmo caminho que, até então, havia percorrido. E a cada pássaro conhecido que avistava, cada pedra, cada flor... meu pensamento coroava-te... Clarice!!... Clarice!!