Sentimento de vida

Um dia ela acordou. Demorou para se levantar. Continuou deitada em sua cama por mais uns 15 minutos, somente pensando em tudo o que tinha para fazer e tentando advinhar que surpresas o dia reservaria para ela.

Ao contrário do costume, não acordou de mau humor. Para ela isso era um mau sinal.

Levantou da cama, foi até a janela e abriu-a. Viu o sol brilhando em seu rosto que mal podia acreditar depois de tantos dias de chuva. Olhou para o relógio e viu que já passava das 10. Dormiu demais.

Mas por que? Por que dormi demais? - era o que se perguntava. Tinha por hábito dormir a acordar com as galinhas. O dia mal começara para ela e já estava achando tudo muito estranho.

Ainda de pijamas foi atá a cozinha para tomar seu café. A casa estava num completo silêncio. Era sábado. Não era para estar tudo tão quieto. Cadê todo mundo?

Começou a sentir frios na barriga. Estava ficando com medo, pois estava achando tudo aquilo estranho demais. Mas por incrível que pudesse imaginar, o seu bom humor se mantinha. Como se algo de muito bom, beirando o extraordinário fosse acontecer. Não sabia o porque dessa sensação e não por onde estava percorrendo em seu corpo, sabia somente que deveria continuar a sentir-se assim.

O seu café da manhã estava simplesmente delicioso. Eram as mesmas frutas de sempre, acompanhados do habitual café com leite e pão com manteiga, mas estavam simplesmente divinos. Nunca tinha comigo algo tão delicioso assim, em toda a sua vida.

Apreciou cada mordida sem nenhuma pressa. Era como se o tempo tivesse parado somente para ela poder apreciar sua refeição.

Terminado o café, andou um pouco pela casa. Estava deserta. Chamou pelo pai, pela mãe, pelo irmão e até mesmo pelo cachorro que sempre detestara. Nenhuma resposta.

Intrigada, voltou ao seu quarto para trocar de roupa. Sua cama já estava pronta. Impossível! Ela não a tinha arrumado antes de tomar o café. Que tipo de brincadeira de mau gosto seria esse?

Abriu seu guarda roupa. Suas roupas. Suas roupas e sapatos haviam sumido. Apenas tinha um vestido longo, branco. Ela se olhou no espelho e viu que estava nua. Completamente envergonhada, não hesitou em colocar aquele vestido de tecido levíssimo. Nunca tinha visto um tecido tão lindo e leve como aquele.

Muito ao longe ouviu alguém chamar pelo seu nome. Saiu correndo pela casa, atropelando os móveis, estava deseperada por perguntas. Passou pelo relógio da sala e viu que marcava 10 horas. Como seria possível? Fazia pelo menos uma hora que já havia se levantado. Quanto mais corria, mais sentia a voz próxima, mas não conseguia identificar de que lado vinha. Até que então saiu á rua. Nenhum carro. Nenhuma criança. Nenhuma pessoa. Nenhum cachorro. Nada e nem ninguém. Aliás a rua estava estranha. Estava lindamente cheia de árvores, que faziam sombras refrescantes e muitos pássaros.

De repente, ela começou a sentir um aperto terrível em seu coração. Estava achando que estava louca. Só podia ser, não tinha outra explicação. Ela tinha a absoluta certeza que estava em algum manicônio, que foi levada para lá a noite, enquanto dormia.

Continuava a ouvir a voz a chamar-lhe, mas preferiu não ir, estava com muito medo. Toda aquela boa sensação que estava sentindo despareceu num piscar de olhos. Se tudo aquilo fosse um sonho, queria acordar o quanto antes e voltar para a sua vida monótona de sempre. Ali pelo menos ela tinha respostas para todas as suas perguntas.

Mónotona... Vida monótona.

Voltou correndo para a sala e olhou o relógio. 10 horas. Correu até o quarto e abriu o guarda roupa, um belo vestido branco, exatamente igual ao que estava usando, estava lá. Olhou o relógio do quarto, 10 horas.

Queria chorar, mas as lágrimas lhe faltaram. A única coisa que não lhe era estranho, faltar as lágrimas quando mais precisa delas.

Estava disposta a entender o que estava acontecendo com ela, mas por onde começar se nem sabia onde estava e muito menos as pessoas.

Resolveu sentar no chão num canto do quarto, de pernas cruzadas, fechar os olhos e deixar a mente fluir sozinha, talvez assim se recordaria de alguma coisa.

Agitada como sempre foi, demorou um pouco para que ela conseguisse fazer algum tipo de flashback.

Pouco a pouco as cenas foram aparecendo a sua mente como num trailer de filme. Viu suas bonecas de criança, se viu brincando na rua com os primos, se viu de aparelho nos dentes, viu seu primeiro amor na época de escola beijando a garota mais popular do colégio, viu seu primeiro dia em escola diferente, viu os seus amigos queridos de longa data, viu seus pais, irmão, o insuportável do cachorro comendo seus sapatos, o primeiro dia de faculdade, a formatura, a bebedeira, viagens que fez, os namorados que nunca teve, as ilusões e desilusões que sempre lhe seguiram, o insucesso profissional. Por fim, se viu deprimida.

Ela acordou daquele transe com a respiração ofegante e completamente assustada. A vontade de chorar aumentara consideravelmente.

Viu que ao seu lado estava sentada uma pessoa. Não saberia dizer se era um homem ou uma mulher. Tinha feições finas e calmas, porém de uma postura muito incisiva.

Essa pessoa retribiu-lhe o olhar com um sorriso calmante, levantou-se e estendeu a mão para ela levantar, ao que ela respondeu sem pensar. Era como seus músculos pensassem por si próprios.

Antes mesmo dela balbuciar alguma palavra, a pessoa lhe disse com olhar penetrante: "Não tenha medo. Todas as respostas que procuras, terá em breve, é só me acompanhar." Sem falar nada, ela o seguiu. Tudo o que ela queria era por respostas e nada mais.

Não sabe como, mas se viu por caminhos que não tinha visto desde que acordara. Desta vez, era cheio de pessoas. Pessoas as quais ela não conhecia, nenhum rosto lhe era familiar. Mas eram pessoas de aparência tão serena quanto da pessoa que estava ao seu lado quando acordou do transe. Estas mesmas pessoas olhavam-na curiosas e lhe davam as boas vindas, meio sem graça era acenava para eles.

Diante de uma árvore de beleza incomparável, eles pararam e um senhor de meia idade e muito bonito parou na frente dela, deu-lhe um beijo na testa e lhe perguntou:

"Sabes onde está?"

"Não!"

"Desconfias?"

"Sim!"

"Queres ter certeza?"

Com lágrimas que não saíam e voz embargada, ela respondeu:

"Sim."

"Posso dizer-te como estás e não onde estás."

"Por favor, me diga."

"Estás morta, minha filha."

"Mas como? Por que? Quando?"

Enquanto estava em sua meditação, teve o mesmo medo que sempre teve em vida e não lhe permitiu ver as respostas que sempre procurou. Respondendo as suas perguntas: olhe seus pulsos, veja essas cicatrizes. Você as causou. Esperou que não tivesse niguém em casa e fez isso a ti mesma. O porque talvez somente você saiba, mas acreditamos que seja tristeza, decepção, desilusão e foi ontem mesmo que aconteceu.

"Você é Deus?"

"Não, não sou. Não gostaria de ter tamanha responsabilidade. Digamos que eu seja somente seu relações públicas."

Ela ficou atônita. Não sabia mais o que pensar, o que falar. Não podia acreditar que tinha feito tamanha barbarida consigo própria, ainda mais ela que sempre repudiou esse tipo de atitude.

"Minha filha, não se desespere. Você terá todas as respostas que procuras e com o tempo aceitará o que lhe aconteceu. Não te aflijas. É um momento bem complicado para ti, realmente e estou aqui para ajudar-te. Ao contrário do que ensinam, não sei até hoje de onde tiraram essa idéia, sua alma não irá padecer em lugar algum por causa da sua atitude. Todos os seres humanos possuem o livre arbítrio para fazerem o que bem entenderem com suas vidas. A vida é um presente Divino e não uma obrigação. Agora estás aqui para acalmar seu espírito e entender que o seu ciclo apenas está começando. Ninguém irá te julgar, muito pelo contrário, estás aqui para aprender e ensinar também.

Um dia voltarás ao plano material, terás outras obrigações, outra família, outros objetivos, outras preocupações, porém levará consigo tudo o que aprender aqui, mesmo que não se recorde."

"Mas não consigo entender o que aconteceu! Ou melhor o por que. Nunca aceitei isso. Sempre condenei esse tipo de atitude! O que eu fiz a mim mesma?"

"O ser humano, minha querida, talvez seja a criação mais complexa. Ao mesmo tempo que ele existe para complementar o espaço na Terra ele existe para questionar, para complicar. Isso é natural. Com toda certeza já ouviu a expressão 'não cospe pra cima que pode cair na testa', isso é o que mais acontece com os seres humanos. É impressionante a capacidade deles de dizerem uma coisa que não aprovam e pouco tempo depois fazem as mesmas coisas. Não é culpa de ninguém, é característica humana. Por serem seres racionais e complexos, os seres humanos acabaram adquirindo a incrível capacidade de agregar responsabilidade e desejos, por consequência gerando assim uma necessidade padronizada. Se a sua vida foge desses padrões, por algum motivo não acompanha o que lhe é dito para ser seguido, acaba acontecendo uma tristeza, um sentimento de impotência e fracasso, o que leva a pensamentos mais obscuros, que podem chegar a atitudes mais obscuras, que é o teu caso.

Mas não há nada do que envergonhar-se. Isso é mais comum do que se pensa. E talvez o número de almas aqui não seja maior por esse motivo, por falta de coragem das pessoas. Não quero e nem é momento para isso, de fazer piadas ou de usar de ironias, não é meu estilo, mas pode-se considerar uma vitoriosa por ter tirado a sua própria vida; é necessário muita coragem para tomar tal decisão. Pode parecer antagônico, mas é um preparo para seu espírito também que precisava de um choque realmente para se fortalecer. O nosso objetivo é que vocês voltem sempre a vida material para aprimorarem suas almas e fazer da Terra um local bom para se viver. E, para atingir tal sucesso, é um trabalho demorado, em doses homeopáticas mesmo."

"Desculpe, mas se a sua intenção é me fazer sentir melhor, não está conseguindo. Creio que era para eu estar me sentindo bem já que estou aqui e esquecer qualquer coisa ruim que eu tenha vivido, mas não é nada disso que está acontecendo."

"Por favor, esqueça tudo o que você ouvir dizer sobre a vida depois da morte. Ninguém voltou para contar e muitas estórias são inventadas e nenhuma é verdadeira. Que tipo de aprendizado você teria se não se lembrasse do que você foi? Não são com os erros que se aprende? Então, você precisa lembrar deles para aprender sua lição se tornar uma pessoa melhor. E também não estou tentando te fazer sentir-se melhor, estou somente te explicando o que lhe aconteceu e o que acontece. Quem tem que entender e fazer-se sentir melhor, é você mesma. Somos somente o instrumento. A prova será quando você retornar para lá."

"Não sei o que pensar, não sei o que dizer."

"Por enquanto não pense nada, não diga nada. Fique sozinha consigo mesma, que as coisas naturalmente acontecem. Não há necessidade de apressar nada, aliás você tem todo o tempo que precisa. Você não perguntou, mas acho que seria importante manter-te informada em relação a seus pais. Eles estão abatidos e extremamente doloridos com a sua ausência. Mas eles ficarão bem. Te asseguro disso."

Ela continuou encarando aquele homem com olhos de dúvidas e medo. Viu ele se afastar. Ela continou parada no mesmo lugar por um bom tempo. Deixou-se cair sobre seus joelhos cansados e caiu em lágrimas como nunca em toda a sua vida. Chorou compulsivamente como se não houvesse mais nada. Ninguém se incomodava com suas lágrimas, da mesma forma que ninguém veio ampara-la. Para ela, naquele momento, não havia mais ninguém e nem desejava que alguém chegasse perto, tudo que queria era chorar e chorar cada vez mais.

Quando as suas lágrimas secaram, fixou olhar num ponto e pensou em tudo o que viveu, todas as dores, todos os sorrisos, todos os toques, todos os beijos, todos os abraços,... e percebeu que queria tudo aquilo de novo. Olhou para trás a procura daquele homem que conversou com ela, mas não o encontrou.

Levantou-se. Olhou para o sol que estava mais brilhante do que nunca, respirou fundo e seguiu em frente, um pé na frente do outro, como a vida deve realmente ser. Não sentiu mais medo. Aquele bem estar voltou e estava mais forte e mais presente dela.

Talvez, pela primeira vez, ela se sentiu viva.