Sober

Mariamne fora uma criança criada sob os regimes de um pai autoritário. Não lhe era permitido sair para brincar com outras crianças, não podia frequentar a escola, tampouco assistir televisão ou ler livros e revistas.

Se não fosse por isso, até poderia ser vista como uma criança qualquer. Branca como a neve nunca caída em sua cidade, de cabelos longos, negros e meio anelados, sem contar pelos olhos escuros como jabuticabas maduras. Era uma bela menina.

Os motivos de seu pai por tal autoritarismo nunca foram bem claros. As faladeiras da rua pensavam que fosse alguma patologia advinda da perda da mulher. Outros acreditavam que era por pura ignorância.

A criança também não entendia bem o porquê de tamanha reclusão. Aliás, talvez não entendesse por não conhecer as coisas que dela eram privadas. Nada além de seu quarto escuro e de seus discos de Bach, que o pai colocava para que ela escutasse pela manhã, ela conhecia.

Conhecia também as três refeições diárias que o pai nunca deixara faltar. Conhecia pequenas fagulhas de sol que atravessavam as frestas de sua janela de madeira e, quando perguntava ao pai o que era aquilo, ele respondia que era luz e que ela nunca deveria saber o que era luz.

Essas coisas não a entristeciam, por não ter nunca conhecido nada além de seu quarto escuro, das três refeições diárias, das músicas Bachianas, e dos resquícios de luz solar que invadiam seu quarto quando havia sol; isso desde o primeiro ano de vida quando perdeu sua mãe.

Certo dia, quando seu pai veio para servi-lhe o almoço, trouxe consigo uma caixa de madeira, relativamente grande, já comida por cupins. Mariamne, antes de comer a macarronada com queijo que seu pai trouxera, perguntou com um ar suavemente curioso o que era aquilo.

A face sisuda do pai se amoleceu em tom de frieza e remorso, e o velho homem, de barba mal feita e dentes já um pouco amarelados, respondeu-lhe que era coisa que não a interessava por fazer mal a “todos nós.”

A menina, então, indiferente por ainda não lhe aguçar a curiosidade, virou-se para o prato a devorar sua macarronada gélida de ontem. Entretanto, num ato que depois lhe causaria arrependimento, o pai a alertou que não se atrevesse a abrir a caixa por motivo algum, senão lhe faltaria comida por sete dias.

Foi então que a menina o questionou. Ora, por que não poderia abrir a caixa? E o pai, com os olhos marejados e perdidos, disse que colocava aquela caixa ali - e só neste instante Mariamne descobrira o nome daquele objeto -, pois algumas pessoas já o questionavam sobre o conteúdo dela; algo que seu pai nunca permitira que ninguém soubesse.

Sendo assim, o pai saiu deixando Mariamne e a caixa. No princípio, Mariamne foi indiferente à novidade. Mas, com o tempo, começou a refletir sobre a importância daquele objeto, já que o pai teve de escondê-la e não a permitiu saber que segredos ali existiam. Claro que pode-se pensar que alguém sem contato com o mundo exterior não chegue a conclusões, mas o ser humano foi algo construído para pensar e, assim sendo, não há nada que o impeça disso, nem a reclusão.

A criança começou a ficar ligeiramente agitada. Andava de um lado pro outro. Chegava-se à caixa algumas vezes e lhe acariciava como um animal de estimação que nunca teve. As horas passavam e, como ali ela viu algo que assassinasse seu tédio, decidiu que a caixa seria sua companhia e, que por isso, merecia um nome.

Todavia, a menina não conhecia muita coisa além de macarronada, pai, Mariamne, luz, água, outras coisas de comer, e agora, caixa. Portanto, durante mais algumas horas, ficou andando de um lado pro outro em seu quarto escuro.

Dado momento, seu pai veio trazer-lhe o jantar, e logo a questionou para saber se suas ordens haviam sido desobedecidas. A menina fez que não com a cabeça e começou a comer. Nisso, num fugaz instante de calmaria, o pai colocou uma das sinfonias de Bach.

O som agradou Mariamne, que lhe perguntou como era o nome daquele som tão agradável, e o pai respondeu-lhe sereno que era a Sinfonia 7 de Bach. Depois disso, mais uma vez avisou a filha do cuidado que deveria ter para não abrir aquela caixa.

Quando o pai saiu, o sentimento de curiosidade aumentou e veio-lhe a idéia de um nome para a nova amiga. Sinfonia 7. Decidiu chamar a caixa de Sinfonia 7. Agora, Mariamne não estava mais só, tinha sua grande e única amiga de infância: Sinfonia 7.

De início, as amigas não conversavam muito. Tinham breves trocas de carinho e conversas bobas de menina. Com o tempo, Mariamne foi descobrindo o valor de uma verdadeira amizade e começou a estreitar suas relações afetivas com Sinfonia 7. Tanto foi assim, que lhe contava os poucos segredos que tinha, nada como namorados ou traquinagens, mas coisas bobas sobre as quais as amigas sempre conversam.

Contudo, Mariamne sentia-se incompleta, tanto pela amiga nunca dar-lhe opiniões sobre suas poucas histórias, como também por não lhe secretar nada. Foi aí que Mariamne, convenientemente, entendeu que talvez a amiga quisesse que ela lhe arrancasse informações.

A menina então pensou em várias maneiras de conseguir isso, até que teve a idéia de abrir a caixa. Logo, veio-lhe à mente a imagem do pai alertando-a sobre o mal que poderia ser causado àquela desfalcada família se a caixa fosse aberta. Então Mariamne pensou, repensou e imaginou que, se fosse pelo bem de uma grande amizade, seu pai não se chatearia - e, obviamente, a garota já estava louca de curiosidade pra saber o conteúdo da caixa. Ora, com todo o respeito, o fato de criar amizade com a caixa não é só fator de carência, mas também um pretexto para agir da forma que Mariamne gostaria de agir.

Dessa forma, Mariamne levou sorrateiramente as mãos até a caixa, acariciou, colocou o rosto fazendo movimentos carinhosos e deu-lhe um beijo. Começou a abrir a caixa e, neste instante, nada mais lhe importava a não ser a euforia por finalmente descobrir o que havia naquela caixa.

Quando a caixa estava aberta, Mariamne notou a existência de algumas cartas, uma faca com marcas de algo como sangue - que parecia estar seco há anos - e algumas palavras escritas na parte de trás da foto de uma mulher.

Mariamne não sabia ler, mas notou que a letra das cartas eram diferentes das letras que estavam escritas na foto. A faca lhe chamou a atenção, e por isso, fechou Sinfonia 7 com as cartas e foi se deitar, pois já era tarde da madrugada. A única coisa que levou para o leito foi a faca, a nova companhia que descobrira.

Pela manhã, quando o pai veio lhe trazer o café, surpreendeu-a com a faca entre os braços. Neste momento, deixou a bandeja cair - o que acordou Mariamne - e começou a esbravejar com a menina. Totalmente alterado, gritava e perguntava insistentemente: ”Por que abriu a caixa, Mariamne, por quê?”

A menina, assustada, chorava e pedia perdão ao pai, que sem qualquer controle a esbofeteava e falava palavras de baixo calão. Em meio ao nervosismo, o pai tomou-lhe a faca e começou a esfaqueá-la sem dó. Caída em mar de sangue ingênuo e infantil, Mariamne gemia de dor e já se contorcia pouco. Foi quando o pai, ciente do que havia feito, começou a chorar e a dizer que sempre soube que a filha era uma maldição e por isso a trancara num quarto escuro.

Ferida e já sem forças, a menina perguntou ao pai o porquê dessa idéia que fazia dela. Num soluço contido, o pai disse-lhe que as cartas que estavam na caixa eram de um homem com o qual sua mãe o traíra. A foto era de sua mãe, tão bela quanto a filha, e que as palavras escritas na foto eram um inútil pedido de perdão. Perdão, porque o homem havia assassinado sua esposa com aquela faca com a qual Mariamne dormira.

E, por fim, o homem disse a filha que nunca imaginou ter que matá-la pelo mesmo motivo que o levou a matar a esposa. Com isso, enquanto Mariamne morria lentamente e já sem dor, o pai enterrou a faca em seu próprio peito para dar cabo a todo aquele sofrimento. Ao cair no chão, que era de madeira, a caixa caiu aberta espalhando a foto e todas as cartas pelo chão. Mariamne, então, em seu último suspiro disse: “Sinfonia 7, o que é luz?”

Raul Furiatti Moreira
Enviado por Raul Furiatti Moreira em 20/01/2009
Reeditado em 20/01/2009
Código do texto: T1394717
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