O mulatinho de Benfica


O mulatinho de Benfica, então, entrou no supermercado. Com rapidez, ultrapassou, uma a uma, as prateleiras na direção do açougue. Não ligou pra promoções e não reparou como estava barato o acém moído. Mesmo assim, pediu dois quilos.
 
- Você quer desse pedaço aqui ou daquele ali?
- Tanto faz. Tem diferença?
- Nenhuma. É que tem gente que prefere escolher o pedaço.
- Mas tem algum motivo?
- Não. Nenhum. Tudo é acém, olha só... Carne boa... Dois quilos, né?
- É.
- Vai fazer carne moída?
- O quê?
- Vai fazer aquela carnezinha moída com arroz e batatas? Fica uma delícia. Eu gosto muito. Muita gente vem aqui e fica querendo levar só carne boa... Filé, picanha, maminha, alcatra. Não que acém não seja carne boa, mas olha o preço. Vale muito mais a pena levar uma carne dessas, fazer um bom refogado e comer com bastante arroz molhadinho. Aliás, é como dizia a minha avó. Dizia não. Diz. Ela ainda ta viva. Depois que passa da goela, é tudo comida... O preço fica da boca pra fora. Toma. Prontinho. Espero que goste.
- Dois quilos?
- Deu dois e cem. Pode deixar ou tira?
- Tira o quê?
- Os cem.
- Tira.
- Ok. Um minuto... Ó. Dois quilos bem pesados. Tenha um excelente dia. 

 
No vai e vem do corte à balança, da balança ao balcão, o mulatinho de Benfica havia surrupiado, com maestria, o facão com o qual Salvador, o açougueiro, cortava suas fraldinhas e costelas há mais de trinta anos.
 
No caminho ao caixa, já sem fazer uso do casaco que lhe cobriu o rosto na entrada do estabelecimento, procurou com rapidez onde estaria Janete. Caixa cinco, ao lado do caixa dos idosos. Deixou o saco de carne moída na prateleira dos desodorantes e, já de facão em punho - ainda roxo pelo sangue bovino que lentamente coagulava - avançou na direção de sua vítima, que só o viu quando já seria impossível reagir adequadamente.
 
Janete conseguiu apenas proteger o rosto com seu antebraço, perfurado incisivamente pelo fio de aço que alcançou seus ossos e torceu seu pulso. O segundo corte atingiu a face da bela mulata numa diagonal precisa, dilacerando boca, nariz e olho direito. O terceiro golpe, o último e mais importante, foi aplicado perpendicularmente e entrou por cima do ombro esquerdo, alcançando o infiel coração de Janete, que foi ao chão em meio a latas de cerveja, pacotes de sabão em pó e garrafas de leite de soja.
 
O mulatinho de Benfica saiu com pressa, mas sem correr. Parecia não se incomodar com os gritos vindos dos corredores e com o barulho das calçadas, que percorria em meio à senhoras bem vestidas e desempregados a procura de afazer. Jogou o facão numa enorme lixeira preta na porta do supermercado e dobrou algumas esquinas, para que pudesse, finalmente, ser considerado de forma oficial como procurado pela polícia.
 
Enquanto lavava-se com sabão de coco e aproveitava os finíssimos fios de água que escorriam pelo velho chuveiro elétrico, o mulatinho de Benfica só pensava em como aquele açougueiro havia sido gentil.
Gustaalbuquerque
Enviado por Gustaalbuquerque em 22/01/2009
Código do texto: T1398717
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