O Ninho das Cadelas

no farfalhar da noite confortável nada se incomoda. cobertores velhos esfarrapados me cobrem; gosto deles, são secos e lisos, mais ou menos como as vestes arqueológicas do Rei David. Minha cadela aninhada no canto da cama, ela não dá a menor pra nada ela espalha suas patas e pêlos marrons pela calçada e pela natureza ela esparrama sua língua do tamanho do universo como uma baleia pelas minhas roupas. e ela só quer um biscoito de cachorro no final deliciosamente crocante. ela não tem beleza nem sucesso, ela é a paz e orelhas cabeludas de mel, balançando sutilmente como a neve. seu diafragma 100% canino relaxa e contrai com a maior facilidade do mundo, ela tem os pulmões da Mata Atlântica extinta nos tempos. já eu

eu não tenho ostentação, tenho o necessário e alguma reserva; daquilo que tenho nada conquistei, nem um pouco. dei uma puta sorte ao nascer. armários, meias quentinhas, janelas, piso, fone de ouvido & decoração de plástico, bens que aquecem a economia e as bolsas sem valores do mundo todo. eu tenho lá o que preciso. minha cadela também, pois ela dorme de boca aberta a engolir o ar da vida. ah, eu também não amo ninguém, e disso não me arrependo, nem de falar isso alto sozinho em casa; eu sou um homem que não vê o sexo como os outros homens, pessoas, animais, sonhos e se agora eu escrevo sem camisa é porque meus versos não se espalharão por aí venéreamente. O sexo é oco.

tenho por aqui coisas que não uso: escrever por exemplo, por capricho posso me dar ao luxo, posso me satisfazer com essa arte vaga e distante. Que também não almeja ser recitada com paixão e emoção; apenas baixinho, nos ouvidos dos amantes secretos. Que não almeja o saudosismo, moldura grandiosa para os mesquinhos. Que não almeja nada para ninguém depois que morrer. Que não almeja melhorar praticamente nada, que só almeja levantar os braços pedantes para o cosmos. Que não almeja ser feliz, que só almeja a plenitude que agora tem (é doce almejar aquilo que já se tem, dá sono). Já eu quero tomar para mim as ambições de um caramujo e de um boi, pastos verdejantes orvalhados de ociosidade caipira.

Ó ternura, descubro a beleza neste Janeiro que cozinha num caldeirão de esquecimento branco. A beleza da mulher me espera de lingerie por aí, num túmulo além-mar, coberta de ostras e algas e baús de feitiços; frutas apodrecem na umidade tropical, tenras e mais doces e vermelhas, cada vez mais, até o ápice sombrio da orgástica morte.

poucos carros circulam lá fora no asfalto molhado e jazzístico assoprando pra lua. O amor chato quer me empurrar garotas bonitas portela adentro e ladeira abaixo mas ele sabe que aqui meu peito não tem fundo! É só uma queda contínua noturna que não tem mais volta. O amor não poupa moças indefesas.

E sabe, todo escritor é um grande anjo de tédio e plumas tenebrosas arregaçadas para as trevas, amplamente absorto em deslumbramentos soturnos. Querubins entoando seus mistérios e proclamando aos quatro ventos o futuro dos seus clarins e oboés. eu, que não sou místico, exalto desta maneira: "estou satisfeito com a vida e com o mundo e sou grato demais da conta. sou contente, iluminado, e a arte mais calada de todas, mais introspectiva e mais solitária é o meu sacrifício para o Deus deste mundo. Delícias e luxúrias e volúpias sinistras, adonai, adonai, etc".

por um dia e uma noite calou-se o poeta, filho da natureza, amante platônico de Vênus e discípulo de Epicuro, apenas para viver ações de graça aos superiores do submundo. O nome dele era Janeiro 2009 e Brasília era sua cadela, roncava, roncava, roncava, ai ai, lençóis como tapetes mágicos e espuma de travesseiro no corvo fugaz que é a madrugada. Adormecidos os dois companheiros no planalto de silêncio venal.

ah...