LAURA NORMANDA ( Lia de Sá Leitão) 15/04/2006

Enquanto a criançada brincava de roda no pátio da casa grande, Luisa contava causos de arrepiar a alma.

Ouviam-se a gritaria da meninada cantando cantigas de roda que não desapareceram durante o processo de modernização no interior pernambucano. A roda girava cantando a primeira quadra na qual era mencionado o nome de um primo, automáticamente largava as mãos dos companheiros de roda fazendo meia volta e ficava de costas para o centro da roda, mas não paravam, continuavam brincando na posição invertida. Assim continuava num alarido só naquele brinquedo. Quando todos estiverem de costas para o centro da roda, passa a ser cantada a segunda quadra e, uma a uma, das crianças retornavam à posição inicial. A CANOA VIROU

A canoa virou,

Deixá-la virar,

Por causa da (nome de pessoa)

Que não soube remar.

Se eu fosse um peixinho

E soubesse nadar,

Tirava (nome da pessoa)

Do fundo do mar.

Enquanto isso, os causos rolavam soltos na vos suave da velha senhora, acontecimentos espantosos do Recife. Esse causo que vou contar era do tempo em que se brincava de roda pelas calçadas sob o olhar zeloso das mães. Era um pra\er ficar horas com suas cadeiras nas calçadas tomando a fresca e cuidando da meninada que brincava inocente enchendo o ar de alegria.

Naquela noite de lua cheia a mulher que morava no Bairro dos Afogados, foi a sensação do momento. Nos idos de mil oitocentos, e lá vem a história, morava no bairro de Afogados uma menina de olhar vivo, peralta, adorava as cantigas de roda na frente da casa. Depois das lições de matemática, as cópias, pontos de geografia e História, seu dia era efusiante, desenhava nos papéis praias com coqueiros, barquinhos singrando o mar e sol, tinha zelo pelos lápis de cores presente da tia no aniversário dos doze anos. O tempo voa da infância para a adolescência, num piscar de olhos a menina se fez moça, bonita, alva, magra, cabelos cor de mel, modos delicados como de uma perfeita sinhazinha, passeava nas tardes de domingo pelo bairro do Recife acompanhando os pais nas reuniões sociais abastadas, Morava num sobrado próximo a Igreja Nossa Senhora da Paz.

Laura vivia tranqüila entre seus familiares, católica, tornou-se professora e catequista. Nas horas de folga, bordavam em linho e miravam o azul do dia. Ela e a mãe eleitavam-se com a suave brisa que corria pelo rio Jaboatão e um braço de mar abriam um canal trazendo sempre bons ares.

Certo dia, Laura demorou-se voltar da Igreja, era a festa da padroeira, o Padre empolgado em seu sermão passou da hora e queima dos fogos, abertura oficial da quermesse, dos barquinhos de madeira que corriam de um lado para o outro puxado por uma corda, uma roda gigante, pescarias, bolos e sucos de frutas nativas nas barraquinhas que sempre amarrado com fitinhas de cetim simbolo de sorte, barraquinha de cordéis com todas as Histórias dos Santos. Um palanque armado para o discurso das autoridades onde professores, bacharéis, catequistas e os alunos mais destacados se espremiam para a foto do jornal. Poetas disputavam as fitas e angariavam dinheiro para a Igreja em suas loas. Lanternas coloridas enfeitavam o pátio, tudo dava cor e brilho diferentes ao habitual negrume do largo.

Nessa noite, o tempo mudara repentinamente após todos os acontecimentos, uma bruma cinza cobria o céu o aguaceiro desceu das nuvens como cascatas frias. A Igreja ficou pequena para acolher a multidão que tentava se abrigar da chuva. Laura como as suas amigas correram para as suas casas, distância de apenas uns vinte metros, correu aos primeiros ventos mas o aguaceiro não podia esperar o tempo necessário de todos os moradores acolherem-se aos abrigos quentes de suas casas, e para aquela moça de delicadas formas não poupara a sua beleza e desabara sob sua cabeça com trovões, relâmpagos e o rasgar dos raios em terra plana como um deus irado cuspindo um rastro de fogo azulado.

A chuva fora-lhe implacável, molhou implacavelmente todo seu corpo, o vestido novo de rendas francesas e seus sapatos de saltinho e veludo que combinava com o laço de fita azul marinho de bolinhas brancas dos seus cabelos deixando-os em desalinho, a face rosada entre a corrida e o frio de tremer o queixo refletia uma cor branca, pardacenta e sem o brilho que lhe era peculiar.

Assolava nessa época por toda a cidade uma gripe horrorosa, uma maldita peste que não poupava ninguém e muitos tinham partido desta para melhor, os pulmões não agüentavam e rompiam os laços com a vida.

Todo dia passavam caixões pela rua que passava em frente da casa de Laura. Caixões de homens, mulheres, moças virgens ou mesmo de criança e anjinhos, sabia-se pela cor do ataúde, por aqueles que acompanhavam seu ente querido, pelas flores e ornamentação, pelos que carregavam segurando as alças ou empurravam os carros dos funerais de rodas de madeira e cortinas em veludo roxo, sabia-se se era gente abastada ou pobre, mas a morte não olhava as classes, as sabedorias ou a ignorância, engolia qualquer um que estivesse disponível a cobrir-se pelo seu manto preto e frio.

Nessa noite a mãe de Laura desesperou-se, um arrepio correu toda a sua coluna vertebral, correu ao encontro da filha com uma toalha a enxugar-lhe os cabelos, os braços e tirar-lhe a roupa encharcada, enquanto no fogo, fervia um chá de erva doce com hortelã miúda, com a intenção de prevenir qualquer moléstia.

Mas, a moça desfalece, uma febre alta toma-lhes a face, espirros, tosses, a febre aumenta e aquele corpo frágil tomba na cama como uma moribunda a mercê dos delírios, Laura em meio ao torpor canta desentoado a cantiga de roda que nos tempos de menina alegrava com a voz doce as brincadeiras da rua enquanto sua mãe e as vizinhas trocavam receitas, fuxicos e orações. Na sua tremula e sumida voz ouvia-se:

A canoa virou,

Deixá-la virar,

Por causa da Laurinha

Que não soube remar.

Os delírios não passavam a moça revirava os olhos e caia em convulsão, os pais não resistiram a tamanho pavor de ver aquela angustiada e pavorosa gripe. O médico e o padre da freguesia foram chamados.

A maldita doença alastrava-se pelos bairros do Recife.

Laura é o motivo de novenas, correntes e preces, a medicina esforçou-se e esgotou seus recursos, para salvá-la, só milagre.

Com o passar dos dias a mãe não se furta em sopas, caldos e chás, fortificou e melhorou a saúde salvando-a.

A presença diária do médico cria um forte laço de paixão e amizade entre os dois.

O moço bem apessoado, filho de uma tradicional família da sociedade, disputado como bom partido para qualquer filha de Senhor de Engenho. Lêucio não olha para mais ninguém, seu coração fora entregue àquela moça de belos olhos castanhos e tez pálida que trazia um especial brilho de vida não ele sabia a quantas custaria aquele amor nascido de conversas e trocas de livros, poemas e romances mais modernos do que as brochuras de capa e espada.

Estabelecida, voltando às suas atividades moça prendada e crente na fé cristã esteve presente em todas as missas de Ação de Graças, louvores, festas, tudo era felicidade, os meninos sorriam e retomaram às suas brincadeiras..

Laura ganhou flores dos vizinhos, santinhos das crianças do catecismo, e ganhou também a companhia do jovem garboso. O namoro era inevitável, meses depois o noivado, um jantar foi preparado à moda francesa, talheres de prata, pratos em louças bordadas em fios de ouro, taças e copos do mais fino cristal, lustres de prata polidos, toalhas de linho branco esmeradamente ornados com florais bordados à mão, todos os preparativos em finíssima estampa para receber o Dr. Lêucio e família, o grande dia para Laura, a formalização do noivado. O primeiro a chegar foi o padre, para uma conversa em tom de confissão, aconselha, abençoa e fica aos beliscos dos doces e salgados. Dentro do horário os Tios, primos e conhecidos cerimoniosos desfilavam pelo jardim. A festa acontece em grande estilo, risadas, brincadeiras, conversas paralelas, salgadinhos, docinhos, sucos, vinhos champagne da melhor qualidade, o jantar, vários brindes, enfim um noivado regado aos costumes recifenses da época. A entrega das alianças ao padre para obter as graças dos céus. O padre solenemente devolve ao pai do noivo a caixa da jóia, e se segue a cerimônia. O pedido de noivado comemorado com brindes, ovacionado com viva os noivos!

Laura levou dias a cozer seu enxoval de casamento, peças em cetim, linho e bordados, o Dr. Lêucio cada dia mais solicitado pela clientela tornando-se mais famoso na sociedade, o sucesso levou-o à fama, e a fama aos freqüentes convites para as reuniões, saraus, chás e jantares, situações que sua noiva, por recatos do horário,ficava impossibilitada de freqüentar.

Enciumada com a ausência do noivo, pediu entre lágrimas e queixas que evitasse tantos compromissos sociais. O rapaz decidiu tomá-la como esposa evitando tais constrangimentos.

O casamento foi anunciado, mais festas, jantares e pompas, os jornais estampavam nas colunas sociais as bodas. A Igreja de Santo Antônio no bairro do Recife estava pronta para a decoração especial exigida pela nubente.

Na véspera do casamento, o jovem doutor foi a um evento ao qual já fazia parte da sua vida, reunir a família e amigos próximos em casa da Matriarca para um jantar, assim, os pais apresentavam filhas, sobrinhas, afilhadas, moças casadouras aos melhores partidos da cidade, o jantar da Avenida Malaquias era tradicionalmente chique.

Nesse dia, Laura, vestiu-se como uma princesa e saiu num colche em companhia do irmão.

Tomada de um ciúme avassalador, arquitetou no caminho um plano enlouquecido e resolveu ficar à distância, às escondidas por trás das sombras das árvores em frente ao sobrado iluminado de bicos de gás. Fez o cocheiro parar do lado oposto da rua, observou com uma fúria demoníaca o movimento dos convidados, a lua se fazia redonda e clareava o chafariz fazendo inveja aos lampiões do pátio.

Ela pôde distinguir seu noivo de braços dado com uma jovem, lágrimas brotaram-lhes incontinentes, sem distinguir o real e a fantasia, Laura em surto,

Acreditou na traição criada pela sua imaginação. Via nitidamente seu noivo beijando outra jovem, irascível a moça desce do coche, adentra na casa como uma doidivanas, pega uma faca pontiaguda esquecida sobre a mesa do banquete e volta rapidamente para o jardim onde se encontrava o noivo e outras tantas pessoas conversando ao sabor da Lua e da brisa doce da noite, pára, olha a jovem diante de si, pensa em enfiar no seu próprio peito a faca afiada mas desiste, pensa em partir para a jovem que olhava a cena atônita, e desperta daquela sandice em meio aos gritos e ao corre-corre , instalou-se o pavor, aqueles gritos prenunciavam a desgraça, os homens perdem a noção do que fazer e se esbarravam uns nos outros, uns socorriam moças em histeria, outros simulavam avançar sobre aquela moça que espumava seu ódio.

Lêucio, atônito, pede calma e toma a arma das mãos da noiva, abraça-a aos prantos, porém, em meio ao burburinho ouviu-se a última jura de amor e maledicência daquela mulher que se julgava traída, se não és meu, nenhuma mulher ficará contigo, a sina delas será a mesma minha, a morte desastrada.

Era tradição recifense o convento, filhas traídas, mães solteiras ou mulheres largadas chegando ao radicalismo das emparedadas. A pobre infeliz estava condenada a uma morte desesperadamente lenta.

Uma das mais assustadoras pragas de assombração estava para acontecer.

Laura decidiu enlutar-se dentro de um convento. Sem perdão carrega seu ódio para a vida.

Lêucio conduz a amada para a casa dos pais em Afogados, e relata os fatos, tomados em desalinhos do vergonhoso escândalo. Os irmãos tombam diante da notícia e o bairro inteiro sofre aquele rompimento da moça destinada com o marido promissor.

Depois de muitas explicações, as famílias se reuniram para dissuadi-la da idéia do convento, nada! A notícia se espalha como um rastilho de pólvora, o padre prometeu palavras de conforto rezou uma Missa para clarear aquele desespero.

Laura perdeu a razão e as suas tardes solitárias era convertida em longos passeios pelo cemitério.

Chegou o dia de ir para o convento, mas estava tão debilitada de saúde que as freiras foram obrigadas a recusá-la como noviça.

Os pais e o noivo acreditavam que aquele processo depressivo não passaria apenas com rezas e orações, era mais científico deixá-la num hospital de repouso.

A moça definha a olhos vistos e seus dias chegaavam ao fim mais breve do que todos podiam imaginar.

Enfim o repouso da carne e paz eterna para sua alma desolada e perdida daqueles que enlouquecem por ciúme.

A vizinhança era toda prece e solicitude, mas ao primeiro sinal dos desinformados, não poupavam os comentários maledicentes.

A morte de Laura repudiando a religião não era difícil de instaurar em pouco tempo o princípio de todas as heresias e bruxarias, qualquer malefício ocorrido no bairro era obra da alma penada, as crianças, amedrontadas com os comentários evitavam brincar irmãos mais jovens de Laura, isolando-os.

O padre não abandonava as visitas na hora da ceia, e assim mostrava para toda a sociedade que não podiam execrar aquela gente pelo infortúnio. Instalou-se a vergonha. A boca miúda, o suicídio da moça era ainda notícia. Recife não era uma cidade tão grande que pudessem abafar o caso e a família migrou para outro Estado

Ao saber que a família estava de partida para outra cidade, tentando esquecer o passado desastroso promovido pela insanidade da noiva, Lêucio vai ao encontro dos seus amigos para um último contato, um adeus, pois também estaria embarcando para o Rio de Janeiro naqueles dias.

Ele desce do coche estabelecendo um fio de conversa entre a razão e a alma. Silenciosamente atravessa o Largo da Paz, com seus passos metódicos, tenciona bater à porta dos amigos, já era noite, hora da ceia, lá as pessoas permaneciam silenciosas como zumbis em meio à sopa já servida.

Ele continua caminhando em direção ao sobrado de linha bem estruturadas com berloques da arquitetura clássica. Na frente da Igreja, uma mulher levanta-se da calçada e pede um dinheiro, ele tira da algibeira uma moeda e entrega-lhe na mão, mas não resiste a beleza fenomenal da pedinte, ela o chama sorrindo e os seus olhos são atraídos pelos gestos sensuais daquela que dançava nas pontas dos pés descalços como quem valsava, mesmo sem o som de orquestra uma melodia espalhava-se pelo átrio o jovem foi atraído, estanca, ele absorto de tamanha volúpia feminina àquela hora da noite e pensa: mais uma pobre perdida na vida, ela sorri e faz gestos da mais sensual dança dos sete véus, preso àquela visão esquece os pais de Laura e empreende passos rápidos atrás daquela insólita criatura, que sorria, rodava, bailava como que suspensa no ar, carregava em suas mãos véus finos e multicores que apesar de compridos nunca tocavam o chão, ele comparava aquela beleza juvenil e descomunal de corpo perfeito, busto quase à mostra, cintura, tez da pele como avelã, seus dentes pareciam brilhar como diamantes na escuridão, a pouca luz fizera a mulher despir-se parcialmente, com a evolução da dança dos véus no ar não maculavam a sua imagem jovial, desprendia de cada movimento um cheiro bom de jasmim que inebriava o mundo, os sonhos, os desejos avolumavam-se, queria possuir aquela mulher a qualquer custo, ela seria a sua eterna musa, a mulher da sua vida, tiraria naquele instante da vida crua das ruas e a tomaria em sua casa.

Lêucio corre na tentativa de segurar uma das maaos estendidas em sua direção, ele corre, ela roda no ar, ele avança, ela sorri, ele a toma em seus braços e ela se desmorona em um abraço cadavérico, ele a reconhece, largou aquele corpo na rua e foge mais que depressa do local, tentou voltar para o coche mas não sabia o rumo, no atordoamento das idéias, corre por um caminho ermo com a visão da mulher desfigurando-se diante dos seus olhos, perdendo a carne, os cabelos, os olhos, os dentes, a cor.

O rio Jaboatão salvava entre na correnteza e as baronesas descidas de outras plagas formavam um tapete espesso anunciando a o encontro das chuvas e das águas que remavam contra os remansos distantes dos tantos barrancos encontrados pela boca d’água arrastando tudo que encontrava pela frente, troncos, um porco e um cachorro morto, um barco virado como se não pesasse naquelas correntezas.

Sem se dar por conta para onde corria, atentando apenas para a fuga daquela imagem aterradora que agora sorria o riso das caveiras insepultas onde o cheiro acre de sepultura dissipava o de jasmim e o hálito doce da opereta não passava de um nauseabundo e fétido cheiro de carne apodrecida que entranhava cada vez mais em suas narinas,

Lêucio, não percebe o perigo, escorrega no lamaçal, levanta-se, corre ainda mais e tropeça nas pedras da nova estrada em construção, alquebrado da fuga insana, não encontrou forças para seguir e se deixa ficar, cair, rola de cima do parapeito da ponte em reforma e cai nas águas negras do Jaboatão e num mergulho medonho, não mais retorna, seu corpo é encontrado três dias depois cobertos de vegetação do rio, foi encontrado preso a um tronco de árvore do manguezal.

Passados anos e anos, ninguém mais lembrava do ocorrido nem com Laura nem com Lêucio, o Largo da Paz passou a ficar mais temido pelos noctívagos, nas noites de solidão, quando os gatos cruzam as ruas e os cães ladram ao longe, e se pode-ouvir os pios das corujas, formam-se brumas azuis que envolvem a madrugada e o vulto da mulher dança sob sete véus que nunca riscam o chão, a bela e formosa, de olhar e sorriso sedutores, trejeitos sensuais de gueixas para conquistar qualquer passante desavisado que envolvido pelo seu encanto. O desavisado escolhido será mais um afogado no Rio Jaboatão ou no braço de mar que abre a corrente para o Atlântico..