Si Bemol Menor

Sempre que estava confusa, sentar-se na varanda abraçada ao seu violoncelo lhe ajudava a organizar seus pensamentos. Era possível saber como ela se sentia apenas pelo tom da música que tocava; funcionava com o detector de sentimento.

A música que tocava era em si bemol menor, a mais acidentada das escalas. Pra ela, esse tom tinha um tom confuso devido ao grande número de notas em bemol ou sustenidas; nessa escala, todas as notas, praticamente, são sustenidas – como tocar apenas nas teclas pretas de um piano. Mas, ao mesmo tempo que pra ela esse tom remetia à confusão, ainda era um tom menor, ainda tinha um tom triste, e o timbre choroso do violoncelo não ajudava muito pra diminuir o clima fúnebre.

Lá fora caía uma garoa fria que o vento gelado trazia pra dentro do apartamento, mas ela não pensava nisso, seus pensamentos estavam bem mais longe de uma discussão sobre o tempo. Lá embaixo, a avenida de acesso à cidade com seu tráfego intenso, a todo momento muitas pessoas saíam da cidade enquanto muitas outras chegavam; lá de cima parecia que eles estavam todos andando em círculos, como quem não sabe aonde quer ir. Quantas vezes dali, da sacada do décimo primeiro andar, ela havia parado pra assistir, em silêncio, o espetáculo das luzes dos carros, que corriam como baratas tontas, já não sabia dizer. E quantas vezes ela não estava sozinha?

A essa altura ele já devia estar longe. Por não ter pedido pra que ele ficasse, ela não se sentia no direito de ficar triste. Ele tinha ido embora. No entanto, agora que ela se lembrava, percebia que ele nunca estivera ali de verdade. A essa altura, ele já devia estar longe, mais longe de que jamais esteve. Ele devia já ter pulado do alto do prédio, estendido suas asas e ido bem mais alto do que o alguém que tinha chegado mais alto. Ele foi feito pra coisas grandes. Esse mundo parecia pequeno demais pra ele.

– Não deixe a vida passar, pegue carona com ela. – Foi o que ele lhe disse certa vez, e, agora, aquilo ecoava em sua cabeça. Ela se envergonhava de sua fraqueza, de sua ingenuidade de acreditar que a vida já era boa desse jeito, que somente o tempo poderia lhe trazer boas coisas; ela fora ingênua de acreditar que, como das outras vezes, desta vez ele voltaria. Ela fora ingênua de ter, por tanto tempo, esperado o sol voltar a brilhar; fora ingênua de ter acreditado que o sol brilhava pra ela. Lembrou-se das tantas vezes que, como uma criança, buscava respostas nas coisas mais bobas; procurara por entrelinhas sutilmente dedicadas a ela, versos por ela inspirados, sonhos por ela suspirados, lágrimas por ela derramadas. Mas o que lhe restavam eram lágrimas derramadas por ela.

Sem querer, aumentara o tempo da música; ela ofegava; acentuava todas as notas; sua mão suava; tocava mais e mais rapidamente; as cordas rangiam; ela segurava tão forte que parecia que o arco ia quebrar; seus dedos tremiam.

Depois de um tempo, acostuma-se mesmo com a confusão de si bemol menor; o que parecia confuso e destoante, depois de tanto ter sido martelado, agora parecia apenas um tom menor, como qualquer outro; qualquer que fosse o sentimento dela agora, não parecia confuso; era uma mistura da tristeza do tom menor com a raiva com que ela fazia soar as notas. Ela suava frio; o brilho do suor se confundia com o das lágrimas. Sua maquiagem já havia tempo estava borrada.

Entretanto ela se sentia forte. Perguntava-se se os efeitos do antidepressivo já haviam começado. As ideias pareciam muito mais claras em sua cabeça; mais uma vez, o violoncelo havia lhe ajudado. Parou de tocar e debruçou-se sobre a sacada. Olhava o horizonte distante daquele fim de tarde de nuvens cinzentas. Lá embaixo, os carros corriam como formigas sem destino. O frio diminuíra. Lá embaixo, os carros corriam como formigas sem destino. Secou as lágrimas do rosto na manga da camiseta. Lá embaixo, os carros corriam como formigas sem destino.

De braços abertos, ela deixou o corpo pender sobre o parapeito e, com os pingos da chuva fina lhe acariciando a pele, ela se deixou cair e, enquanto planava no ar e sentia o vento batendo em seu rosto, ela esperava ser acolhida nos braços dele, que com suas asas, certamente, a salvaria antes que ela atingisse o chão. – Era o que ela estava fazendo com sua vida; diante de seus olhos, ela via a vida medíocre que vivera.