A Revolução das Letras

A revolução das letras

Pouca gente sabe disso, pelo menos até agora. Acerca de 3 rapazes que saíram para fazer um assalto. Apontaram armas para as pessoas numa farmácia, limparam o caixa e correram em disparada. Foram dar num local afastado, com alguns pés de mamona e uns fios de esgoto. Parece que nesse local aconteceu alguma coisa. Pouca gente sabe explicar. Saíram dali com uma estranha sensação. Talvez porque fosse inusitada. Nem levaram os pertences da farmácia. Depois de um dia ou dois, como ninguém desse pela sua existência, rumaram para uma biblioteca, próxima ao largo de Santo Amaro. Mal sabiam ler mas queriam ler. Liam com os dedos, somando pares de letras até entenderem, uma espécie de laborioso exercício. Dia a dia. Dormiam sob a marquise da própria biblioteca. Durou isso uma semana. Um mês. Dois meses. Comiam graças a boa vontade do vendedor de cachorro quente, que atuava na praça da biblioteca. Ninguém fazia perguntas. Ficavam o dia inteiro lendo. Dia a dia a leitura entrava na esfera da coerência. Não eram analfabetos, estavam com o ginásio inconcluso quando se inspiraram nalguma coisa que os levou a assaltar. Outra coisa, porém, levou-os à biblioteca. Dia a dia, liam. Ninguém se incomodava. Podiam ler, desde que dentro da biblioteca. Executavam pequenos serviços de limpeza, em troca das questões resultantes da leitura. Dia a dia. Tinham vista boa. Um negro, um branco, um pardo. As cabeças raspadas iam ganhando algum cabelo. Higiene pessoal era obtida num casebre vizinho, abandonado. O vizinho do casebre mais tarde contaria que, a princípio, tinham aparência ameaçadora. Mas que depois, não. Depois se dispôs a ajudá-los, engendrando uma gambiarra na água do casebre. Dia a dia os rapazes liam. Ao passo que liam, faziam anotações, não muitas, mas faziam. Devido ao exacerbado movimento noturno da região, e de uma ou outra pergunta suscitada, passaram a se recolher às 10 e a se levantar às 5. Um belo dia partiram, cada qual para sua casa. O que não significava muito, em termos de separação, pois moravam na mesma rua. Em cada casa uma família, em cada família um questionário: onde estiveram? Roubaram o que? Quanta droga consumiram? Eles não respondiam. Um branco, um pardo, um negro. As famílias se conheciam. Numerosos familiares, os que tinham trabalho, executavam-no no estreito leque de opções. Os que se aventuravam na estrada da má lida, culminavam também no desfecho de poucas opções. Os rapazes pouco falavam. Liam. Executavam pequenas tarefas, a fim de obter dinheiro para a condução que os levasse para a biblioteca mais próxima. Certa noite, o pai de um deles, não se sabe se do pardo, do negro ou do branco, virou-se para o filho e disse: quer dizer que aquele safado do fulano de tal, ontem à noite lhe roubou a carteira, e você não fez nada? O filho respondeu: “se roubam a minha bolsa, se tornam escravos dela. E ela não vale nada. Se tornam escravos de um nada. Agora, se roubam o meu nome...”. A sentença ficou inacabada. O pai nunca entendera aquela mensagem. Não foi isso que o tocou. Foi o olhar do filho, o brilho sereno do olhar, a certeza que irradiava daqueles olhos. Fora o suficiente. Ninguém ali tinha certeza de nada. Conversas semelhantes ocorreram nas outras casas. Outros pais ou mães, irmãos ou irmãs, apesar de não assimilarem o conteúdo, ficavam encantados com a certeza. De onde vinha isso? Soube-se que o irmão de um deles, mais velho e até então muito voluntarioso, passou a agir conforme via: deitava-se às 10 e levantava-se às 5. Tinha muita dificuldade com as palavras, e mais ainda com o que elas pudessem significar. Despendia enorme tempo, quase mordendo a língua, na tentativa ou de extrair-lhes o som correto, ou mesmo de compreendê-las. Como um vírus realmente agressivo, foi com certa agilidade que esse comportamento espalhou-se entre as 3 casas, depois para rua inteira e depois para a vizinhança como um todo. Os que estavam na boa lida, passaram a guardar um trocado a mais para a condução. Endereços e horários de bibliotecas agora dividiam espaço junto com papéis de outros interesses, nas portas das geladeiras. Os que milagrosamente conseguiram sair de atividades temerárias, às vezes se tornavam os mais audaciosos nos temperos da leitura. Todos liam. O colégio do bairro já não era suficiente. Mesmo porque não funcionava todos os dias. Um dos parentes tinha um táxi. Dependendo da ocasião, ficava mais barato. Contavam-se histórias no trajeto. O que chamou a atenção de um repórter, de uma pequena emissora de notícias, foi a visão diária de dezenas de pessoas, todos os dias, na porta da biblioteca antes vazia.

- Que tipo de livro eles querem?

A bibliotecária sentiu-se acabrunhada diante da câmera. Esclareceu não se tratar de auto-ajuda, fórmulas de sucesso, folhetins amorosos ou best-sellers.

- Nem seria possível – frisou ela – nossa biblioteca é modesta. Velhos livros, velhos autores. Veja a lista do que eles pegaram esse mês: Garcia Redondo, Simão Lopes Neto, João do Rio, Orígenes Lessa...

O repórter não entendia. A emissora não estava disposta a estender o assunto. Ele no entanto tentou mais uma investida. Ficou sabendo que começou com 3 rapazes. Aqueles 3 ali, disse alguém, mas quando ele chegou de microfone em punho só restara um, não se sabe se o negro, o pardo ou o branco. O preâmbulo da entrevista extraiu os dados básicos: nome, idade, escolaridade, etc. Dado momento o repórter sugere: mas quem gosta de penúria é o intelectual!

O jovem deu de ombros.

- É? Não sabia. Mas...creio que nem o intelectual saiba o que é penúria. De qualquer forma, gostamos de ler, é só . Não vemos como isso pode mudar a nossa situação financeira. Depois, trata-se de uma questão de asseio. Repare. Aparecemos com freqüência nos noticiários. Praticamente todos os dias. E em situações pouco louváveis. Às vezes nos pedem para falar. Assim, na hora de falar, não cometeremos erros de português.

- Erros de português?

O jovem sorriu, respondendo: “Quando o português chegou, estava chovendo, e então vestiu o índio. Se tivesse sido um dia de sol, o índio teria despido o português”.

Dizem que o jovem piscou o olho para a câmera, antes de partir.

Quando chegou na esquina, os dois amigos estavam apreensivos.

- Então, cumpriu o intento?

- Acho que sim – disse ele – e com certeza não voltará.

- Acho que a sua citação do Mario de Andrade estava errada.

- Não é do Mario. O importante é que ele não vai voltar. Não com essa abordagem. A lógica deles é diferente da nossa.

A matéria nunca foi transmitida.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 28/01/2009
Reeditado em 09/07/2013
Código do texto: T1409380
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