Da necessidade de um ponto de partida

Podem as lembranças de ontem, apontar uma

direção para um recomeço?

Da necessidade de um ponto de partida

E quando a noite proferiu a sua cor, deixando na lembrança aquele alaranjado do sol que se recolheu, suspirei brandamente o início do fim de mais um dia. Um silêncio abateu-se naquele cômodo pequeno, vazio de vozes, cheio de pequenos objetos estagnados em seus tediosos lugares.

Uma fraca claridade que teimava em iluminar aquele espaço, vinha de um abatjour com base de madeira em mogno, sem aquele brilho que tem os de hoje. Fez-me lembrar quantas foram às vezes que passei o “dito” lustra-móveis para tentar dar-lhe um brilho que nunca teve; ele ali, sobre um móvel antigo, todo talhado a mão, com uma pequena gaveta com puxador de plástico todo desenhado e revestido com uma tinta a imitar o dourado. Noutro canto uma outra mesinha que fazia par, assentava um vaso todo pintado de violetas, e nas bordas, levava um leve fio dourado. Nele, flores com pétalas de ráfia formadas pelo crochê que minha avó fazia, adornavam esquecidamente aquele vaso.

Em uma das paredes, uma janela bem antiga, com venezianas de madeira, pintadas num tom de gelo fosco, e duas outras deslizantes confeccionadas com madeira que suportavam os vidros.

Um trilho bem rente ao teto fazia correr uma cortina de renda branca, toda desenhada com flores em tons de bege e marrom, seguindo um degrade bem leve que descia até o chão. Três metros e dez de altura. Tento imaginar o por quê de antigamente, construírem casas tão altas. Bem, agora ninguém pode me responder essa questão. Sento-me no sofá de molas que vem desde os anos de 1960; e ao encostar a cabeça no mesmo, deparo-me com um quadro pintado a mão que mais parecia uma foto antiga em preto e branco. Era o rosto de meu bisavô.

Lá estava ele, de ponta cabeça – devida minha posição no sofá -, mas mantive-me ali, sem me mver. Como se não tivesse forças para trazer a cabeça à posição normal. Lembro-me das histórias que minha avó contava. Que ele era um gondoleiro em Veneza, e se apaixonara por uma filha de Condessa.

Parece conto de fada. Eu ali naquela posição ridícula, olhando para uma foto de ponta cabeça, um homem com feição sisuda, cabelos bem curtos, já grisalhos, um bigode também com seus fios esbranquiçados, e vestia algo que não consigo ver bem o que é. Apenas que é bem fechado até o pescoço e a recordar das histórias da minha avó que sempre se gabava ao dizer que era filha de condessa.

A bem da verdade, sempre duvidei desse fato, mas quem era eu para discordar da matriarcal italiana.

Começo a voltar os olhos para o teto, olhando de um lado ao outro, tentando buscar naquele vazio um – não sei o que - que me aflige.

Já se faz 22:00 e me perdi nas lembranças que nem tanto me fizeram feliz. O que virá amanhã...

“De um passado confuso...

à um futuro desconhecido”

Um presente dorido pelas conseqüências de um passado confuso; não sei o que fazer, o que pensar, por onde começar. Sei apenas que desconheço qualquer iniciativa.

Tantas coisas por fazer e o medo imbatível de tentar. Não saber com quem contar, em quem confiar; não se vive só neste mundo meu Deus. O passado me foi tão fácil. Tudo eu consegui sem esforços, mas porque me deram, eu não pedia.

Não fui eu quem errou, foram eles a quererem assim; e por mais que tentasse andar pelas minhas pernas, eles não deixavam.

Fui podada em ambições, ensinada a querer o mínimo possível para não gerar dentro de mim a ganância, o desprezo, a prepotência. Seriam essas as conseqüências caso eu ambicionasse mais do que sonhei?

Sempre sonhei com a metade. E hoje, nada me é por inteiro.

Aquele tanto está bom, não precisa mais que isso. E esse “mais”, hoje me faz falta. Não para o excesso, mas para o essencial. Não me sinto completa. Sou uma metade.

Eu creio em mim, mas creio pela metade. É até onde me foi ensinado. O tudo é demais. Os bens são pela metade, amigos pela metade, dinheiro pela metade, amor...Amor pela metade. O sonho sempre pela metade. Algo sempre está ao meio, deixando-me apenas a metade.

Todas essas lembranças não me trazem alegria nem saudade; mas muita dor, muito vazio, muita escuridão. E na escuridão o tempo passou. Abro a janelinha da porta, olho para a rua e naquele breu o dia se fez. No lugar do edifício em frente, as casas de 20 anos atrás, calçadas desenhadas com lajotas, árvores a cada 50 metros dando sombra aos cães da rua.

Rua de paralelepípedos, onde escorreguei e esfolei várias vezes os joelhos e cotovelos. Meus amigos e amigas, vizinhos das casas. Meu nome sempre surtia alto. Com eles eu me impunha, mandava. Não a dona da rua, mas tinha o respeito daquelas crianças que sempre perguntavam o que íamos fazer. A menina determinada, segura do que brincar, jogar, ou ir. Mas olhava aquele rosto e via que ela sentia-se egoísta.

Não era isso que aprendera. Mas era ali que mostrava as suas vontades.

De repente uma voz na cozinha em tom bem alto: -Vem almoçar!- Ela para tudo. Todos param e vão para suas casas.

Uma cozinha ampla com uma copa de igual tamanho, uma mesa retangular de fórmica verde clara. Seis cadeiras a postos a esperar pelos outro da família.

Um riso me veio a face. A imagem de meu avô, sentado de frente para mim, só a esperar que todos se servissem. Ele gostava de ser o último a se servir. Mesa farta; comida sempre a vontade, estava lá, a espera de ser devorada.

O silêncio imperava nas refeições, quando não, meu pai reclamava da falta de sal no arroz, ou o bife mal passado, e minha avó a dizer que ele só sabia reclamar. Era assim a conversa. E apenas os adultos. Só eles sabiam o que dizer.

Porque todas essas lembranças meu Deus?

Eu amei demais aquela família, mas porque sempre me tratavam como alguém que era incapaz de produzir algo?

Porque tudo o que eu criava e mostrava com orgulho, era visto como algo tão fútil?

Sempre fui boa aluna, boa filha, mas nunca era o bastante.

Faltou-me o colo, o abraço, a mão na cabeça. Eu sei que me amavam da maneira deles, mas, não demonstravam.

Talvez achassem patético dizer: -Filha, eu te amo.-

E mal sabiam o quanto isso me fez e faz falta.

Olha eu lá de novo. Sentada à mesa da copa a rabiscar um papel. Estou com um olhar sereno, como quem estivesse numa viagem.

Pego o caderno e corro para mostrar a minha mãe.

“Nas formas da borboleta

vejo uma vida nascer.

Nasce em forma de verme

e na mutação, as cores

vivas das asas coloridas,

a força da liberdade

a faz voar ao infinito“.

-Que bonito filha, onde você leu isso?-

-Eu não li mãe, eu que escrevi.-

-Tinha de ser. Só na tua cabeça para escrever sobre uma borboleta.-

“Mas um dia a borboleta

não tinha para quem voar,

e perdendo as forças

foi devagarzinho pousar

numa folha qualquer,

de uma árvore qualquer

e cansada se pos a chorar.

E de tanto chorar, secou...

e morreu.”

Se não acreditam, estes foram meus primeiros versos.

Qual a diferença de ler e escrever? O que fazia daqueles versos mais belos, se lidos em um livro ou escritos por mim?

Dei-me conta que tudo que eu fazia era nada, não prestava, não tinha valor algum.

Malditas lembranças.

Eu quis ser atriz e não era bom para mim.

Eu quis ser cantora e não era bom para mim.

Eu quis fazer psicologia, mas isso era coisa p’ra doido.

Fui forçada a fazer curso de Inglês, mas não me deixaram ir para os EUA com um grupo das melhores notas, porque não precisava tanto. Nenhuma vontade minha era boa para mim.

E o sono não vem.

Não quero mais lembrar de nada. Não quero mais imagens do passado. Não me ajudam em nada, a não ser chorar. Se buscar uma resposta é reviver esse passado, a tentativa está a ser em vão. O passado não me trás nada de bom. Preciso do agora, deste exato momento.

Sair daqui é a resposta. Isso tudo acabou. Eles morreram nesta casa. Esta casa morreu junto com meu passado. E quem sobreviveu, trás marcas de tudo que passou. Tenta de alguma forma me machucar, me trair, me prejudicar. E a estes sobreviventes dou-lhes as costas. Dei-me demais para merecer tanto mal.

Deixei de viver as minhas vontades, os meus sonhos, para que outros tivessem de mim tudo que queriam. Os mortos levaram consigo a minha rendição, os vivos que me perdoem, mas não doarei mais nada de mim.

A claridade do novo dia já adentra pelas frestas da janela. É hora de recomeçar. A noite que poderia ser de doces lembranças, tornou-se um pesadelo. Já do lado de fora, fecho a porta a chave; e na calçada olho para a frente da casa e em pensamento digo: Agora é a minha vez. Adeus passado.

Anna Müller
Enviado por Anna Müller em 18/04/2006
Código do texto: T140939