Filhos da Cana

O sol a pino no canavial criava uma atmosfera desértica e sufocante.

Nas trilhas por entre os enormes “blocos” do plantio de cana-de-açúcar, caminhões iam e vinham, abarrotados da preciosa planta. Ao lado de caminhões ainda parados, trabalhadores surrados pelo esforço, exerciam sua função e transferiam os montes de cana acumulados no chão para dentro da carroceria do transporte. Há alguns metros dali, outros trabalhadores, possivelmente mais debilitados devido a condições extremas, num feito ainda mais forçoso, valiam-se de afiadas foices e facões para realizar seu trabalho de extração, golpeando a planta em sua base, o mais próximo possível do chão.

O movimento contínuo e repetitivo dos golpes gerava abundante quantidade de suor, que acabava retido nos trapos amarrados em forma aproximada de turbante, na cabeça dos trabalhadores.

A usina, relativamente próxima, também trabalhava a todo vapor, fermentando, destilando e usando para diversos fins o caldo resultante da moenda da cana, tendo como enfoque principal, a produção de aguardente. O bagaço, já desprovido de substâncias líquidas também é aproveitado, entre outros, como combustível, para as enormes máquinas industriais.

Logo, já que tudo funcionava na mais perfeita simetria, a vida ia bem para Jorge Ferraz, o dono de todo aquele pequeno império.

Com seu carro novo, Jorge pega um desvio da estrada asfaltada e segue por um novo caminho, rumo a sua usina. Enquanto anda pela sua propriedade sente seu poder multiplicar-se, ali, sente que é capaz de fazer tudo, que sua palavra é lei, e que em poucos segundos pode mudar a vida de dezenas de pessoas. Sua arrogância e prepotência aumentam na medida em que avança em direção a seu destino.

De passagem, observa de canto de olho a situação do lugar, que já não visitava há três dias, e logo inflama-se ao ver que ainda resta quantidade razoável de trabalho a ser feito. Segundo seus cálculos, o último dia de colheita deveria ser hoje, sábado, e domingo começariam lentas e calculadamente as outras fases da produção. Mas parecia que algo havia atrasado o corte da cana e que seria necessário mais um dia de trabalho...

Jorge estaciona o carro e atravessa a porta de entrada da construção anexa à usina. Anda alguns passos e encontra um dos seus "gatos" (pessoa encarregada de contratar e repassar o pagamento para os trabalhadores, intermediando, assim, o contato entre patrão e empregado), atrás de uma mesa, analisando, concentrado, alguns papéis. Ao avistá-lo, Chico, o “gato”, solta bruscamente os papéis e simula um sorriso espontâneo, sem muito sucesso e exclama:

- Olá Chefe! Tudo bem com o senhor?

- Chico, porque a fase de corte não terminou hoje como o planejado? Já estamos no fim do dia! Cadê o Aderbal? Inferno! – Jorge falava enfática e violentamente, olhando para os lados à procura do outro encarregado, responsável pelas instruções e pela organização direta.

- Ah Chefe, não sei, o Aderbal não apareceu, parece que ele está doente, ou sua filha `ta doente, sei lá, não entendi direito, mas ontem ele também não veio aí eu fiquei meio atrapalhado e tive que trabalhar em dobro, e, e... alguns trabalhadores sumiram, eu não consegui dar todas as instruções

- Aderbal filho-da-puta! E você Chico, nem pra repassar ordens! Porque você não me ligou ontem assim que viu que Aderbal não vinha?

- É que eu fiquei tão preocupado em fazer tudo, e agilizar o trabalho, que não consegui, e também...

- Cala a boca! Vamos resolver esta situação agora mesmo, antes que os trabalhadores vão embora. Você vai reunir os trabalhadores da “Monte Novo” e passar as novas instruções. Amanhã eles vão ter que começar o trabalho às seis da manhã. Assim, quem sabe no fim do dia os caminhões estão todos cheios e poderemos acelerar um pouco a fase seguinte, pra não nos atrasarmos. Eu vou pessoalmente avisar os trabalhadores da “São João”, para ter certeza que não vamos ter problemas.

Jorge vira-se bruscamente e caminha porta afora, a passos largos. No caminho saca o celular, procura rapidamente na memória de seu aparelho o número de Aderbal e aperta em “chamar”, o telefone toca algumas vezes até que alguém atende:

- Aderbal? Você está demitido, filho-da-puta incompetente, não quero mais ver sua cara! – e desliga sem sequer ouvir a resposta do vacilante Aderbal, do outro lado da linha.

Ao chegar nas proximidades de seu destino, já é capaz de avistar cerca de quinze homens, alguns sentados em semicírculo, outros deitados ou simplesmente jogados ao chão e, junto a eles, duas ou três garrafas de pinga (da fábrica) quase completamente vazias, parece que já estavam aproveitando o fim da jornada de trabalho e também a diversão, já que amanhã cedo poderiam descansar bastante. Após alguns segundos, Jorge respira fundo e vai ao encontro dos trabalhadores, vociferando grosseiramente para que eles reúnam-se. Os trabalhadores, meio confusos, aglomeram-se em um canto.

- Para quem não me conhece, eu sou o dono desta porcaria, e vim falar com vocês pessoalmente porque aquele inútil do Aderbal não é capaz de fazer as coisas direito.

Aos poucos, o “patrão” percebe que os cortadores, em sua maioria, já estão levemente embriagados e novamente repara nas garrafas de sua produção passada vazias no chão.

- Vou direto ao assunto: Houve atrasos, e amanhã, às seis da manhã quero ver todos aqui trabalhando, normalmente. Não haverá mais descanso e o pagamento também só será feito amanhã.

A reação imediata foi um brado em uníssono dos trabalhadores revoltados.

- Como assim? Mas já estava combinado o pagamento hoje, e o descanso amanhã cedo!

- Não importa porra! Você é surdo? Amanhã às seis, e quem não vier, não vai receber nada!

Em uma reação quase que coletiva, os trabalhadores, alterados, procuram o cabo de suas foices e facões com a as mãos, e apertam-nos friamente, com sangue nos olhos. Um burburinho alto começa, e vozes e impropérios misturam-se com o ar quente do fim de tarde. O clima é tenso.

Jorge, atento a qualquer movimento, leva a mão rapidamente à cintura e saca uma pistola automática cromada. Sem pestanejar dispara dois tiros para o alto.

- Não quero ouvir reclamações. Eu vim dar um aviso, amanhã às seis.

Concomitante às últimas palavras, Jorge caminha para trás, ainda mirando com o olhar a face dos cortadores assustados e silenciados pela demonstração violenta do patrão. Logo vira-se e volta para seu carro, sem demora.

* * * *

Lirinha estava sem dinheiro, mas não queria saber. Hoje iria se divertir de qualquer maneira. Pediu dinheiro emprestado para alguns bons amigos, vestiu sua melhor roupa, encheu o bolso despreocupadamente com as notas e ajeitou sua inseparável faca na cintura, por dentro da calça.

Decidiu que queria um lugar requintado, então escolheu o bordel “Dona Carmem”, meio afastado da cidade.

Foi de ônibus. A casa, que abrira há pouco, quando o rapaz alto e magro de 23 anos chegou, ainda estava vazia. Lirinha observava argutamente a movimentação soturna do estabelecimento, e fascinava-se com o caminhar lânguido e transbordante de lascívia de suas trabalhadoras, vestidas a caráter.

O tempo corria, e noite adentro, Lirinha entornava mais e mais copos de uma estranha e cara cachaça especial com limão. A falta de uma alimentação devida, contribuiu para uma facilidade muito maior em embriagar-se, dada a rapidez com que pedia as doses e virava os copos. De sobressalto, cambaleante, o rapaz levantou-se decidido a levar a cabo a missão que viera realizar. Mirou o olhar em uma garota que vinha chamando a atenção dele já há algum tempo e caminhou decididamente em sua direção:

- Ei você, mulher, quanto você cobra?

Com um sorriso de mudo espanto pela abordagem direta, a mulher limitou-se a responder:

- Oitenta reais...

- Então vamos para o quarto, não quero perder tempo! Vamos!

A mulher virou-se em um gesto característico, pedindo tacitamente para ser seguida.

Lirinha aprumou-se, passou a mão no cabelo curto e escuro, ajeitou a roupa e começou a seguí-la, por último decidiu por a mão no bolso, a fim de checar o dinheiro que ainda lhe restava. Tirou as notas do bolso, e começou a contá-las desajeitadamente. Após uma primeira contagem, começou de novo, não satisfeito com o resultado inicial. De repente estacou, com o desgosto subindo-lhe por todo o corpo e estacionando em seu singelo coração. Não era possível... Havia gasto muito dinheiro, ele não tinha R$80,00.

A garota, de canto de olho, percebeu a cena. Soltando um sorriso quase decepcionado, disse:

- O que foi? Você não tem dinheiro?

- Merda! Essa porra de cachaça! Olha mulher, é o seguinte, pelo que eu contei aqui, eu tenho cinqüenta e cinco, pode ser?

- Você está querendo pechinchar o meu serviço? O preço é oitenta, se você não tem, não posso fazer mais barato, normas da casa.

- Mas eu não tenho todo esse dinheiro aqui! Você não `tá entendendo moça, eu preciso muito disso, pelo amor de Deus, depois eu trago o resto, palavra de honra!

- Ah! Faça-me o favor! Vê se acha outra que topa.

Lirinha tremia, incrédulo com a situação. Estava tudo planejado para esta noite. Ele se divertiria como nunca na vida e amanhã tudo voltaria ao normal. Havia pego dinheiro emprestado e queria aquela mulher, não outra. As coisas não poderiam ser tão difíceis. Em gestos claramente potencializados pelo álcool, Lirinha erguia seu braço direito ao mesmo tempo em que avançava em direção à ela, tudo isso devagar, porém com explícita conotação violenta. A mulher, intimidada pela ação agressiva de seu interlocutor afasta-se comedidamente, de costas, até esbarrar em uma parede. Lirinha continua seu avanço, intermeado por palavras ofensivas em tom choroso, desiludido. A garota, acuada, solta um agudo e estridente grito de socorro.

Lirinha acorda de seu transe etílico, mas já é tarde demais. Antes que possa retratar-se, dois homens de invejável compleição física, vestindo terno preto e gravata amarela, surgem repentinamente e agarram-no de maneira eficaz. O rapaz tenta debater-se e explicar-se, mas aqueles homens não estão ali para ouvi-lo. Num movimento síncrono, os seguranças arrastam Lirinha imobilizado, por toda a extensão do estabelecimento, até chegar a porta de saída, onde, de maneira violenta, enxotam-no após bons e doloridos golpes.

O rapaz, surrado e embriagado, atravessa a rua e anda mais alguns passos. Trôpego, ainda sob forte influência do álcool, topa em um desnível da sarjeta, cai, e por ali fica imóvel, estático...

* * * *

Após um dia estressante de trabalho e uma prolongada noite relaxante de farra, Jorge deixa a companhia da linda moça de cachos loiros, trabalhadora do “Dona Carmem”.

Atravessa a porta de saída, responde com um sucinto “Boa noite” às efusivas despedidas dos seguranças que retornam para dentro da casa e, satisfeito, cruza a rua em direção a seu carro.

Jorge desativa o alarme, pressiona a maçaneta e ouve:

- Ei moço! Dá licença...

Jorge, um pouco surpreendido, lança um olhar para a origem do chamado e avista um homem com alguns hematomas leves e pequenas marcas de sangue coagulado:

- O moço, me arruma um trocado, qualquer coisa, por favor. Eu caí aqui e me roubaram! Levaram meu dinheiro, que nem era meu!

- Vai te catar! Não tenho dinheiro pra você.

- Por favor! Só um trocado, eu preciso beber uma pinga.

- Já disse que não tenho – Jorge, um pouco receoso, começa a abrir a porta do carro.

- Porra! Você tem um carrão, tava lá dentro se divertindo e vai me falar que não tem dinheiro? Conta outra – Lirinha, com fogo nos olhos, exaltado pelo total fracasso da sua noite, avança e segura Jorge pelo braço violentamente.

- Eu só quero um real para tomar alguma coisa e esquecer toda essa merda!

Jorge, num contra-golpe, balbucia algumas palavras ofensivas e empurra o braço de seu agressor. Lirinha se irrita mais, e parte ferozmente para cima do dono do carro. Os dois atracam-se com violência, ambos assustados com o desenrolar da história, mas, em poucos segundos a luta finda e o destino se descortina. Lirinha afasta-se com a faca em punho... totalmente ensangüentada. Jorge, pasmo, leva as mãos ao ferimento jorrante de sangue. Seu ventre havia sido praticamente aberto pela faca. O rapaz de 23 anos, já nem tão bêbado observava a cena atordoado. Olhos nos olhos com o inimigo.

Mais alguns instantes de hemorragia e Jorge vai ao chão, num silêncio lúgubre, permeado apenas pelo baque surdo de seu corpo desajeitado encontrando o solo firme, ainda alheio a tudo que estava acontecendo e descrente com seu destino.

Instintivamente Lirinha apalpa o bolso traseiro do homem caído de bruços e encontra uma carteira. Esvazia o dinheiro de seu interior e joga o resto pelo chão nervosamente. Num instante pára e observa ao seu redor... silêncio, nenhuma testemunha. Correr é tudo que ele se lembra de fazer, em estado de pânico, simplesmente corre até não agüentar mais.

* * * *

Seis horas da manhã, Lirinha entra num bar, pede uma dose de pinga e paga com o dinheiro retirado da carteira. Vira de uma vez o conteúdo do copo e sai.

Faz sinal para o ônibus que passa e parte para seu trabalho, para o qual já estava atrasado.

Segundo os planos, ele poderia dormir até mais tarde hoje, mas o maldito patrão havia cancelado a folga, além do mais, precisava ir ao trabalho pois o pagamento havia sido adiado para hoje, e estava devendo para uns amigos.

Só havia cana em sua vida. Cana para esquecer da cana. Cana para esquecer da morte. Cana para esquecer da vida...

Djalma Nery Neto
Enviado por Djalma Nery Neto em 18/04/2006
Código do texto: T141039