Mulher

Nuvens turvas começavam a se espalhar com velocidade pelo céu, preparando um pé d’água para logo mais. Ela caminhava pelo centro comercial, fazia compras, desprevenida, escolhia coisas para a casa, roupas para si, para as crianças, para o marido. Olhava as vitrines, entrava nas lojas, indagava os vendedores, pechinchava. Um sentimento de cumprimento do dever lhe impulsionava a escolher bem, comparar mais, ainda que em seus pés já começassem a incomodar os primeiros calos. (Pudera, o sapato com salto, ainda que pequeno, para quem sabe que vai andar, não é boa escolha. Tudo bem, foi o único que caiu bem com a roupa escolhida.) Caminhava só, conversando consigo sobre as opções, os preços, a qualidade dos produtos, os gostos dos seus. Crente de que estava escolhendo certo, agradaria a todos, as contas batiam direitinho com o orçamento daquela saída.

Então as nuvens começaram a desabar pelo centro, pela orla e por toda a cidade. Teriam os seus pequenos lembrado de tirar a roupa do varal? E a cama, será que desviaram do vazamento bem no meio do seu quarto? E as janelas? Ai, aqueles meninos iam ver uma coisa se a casa estivesse encharcada quando ela chegasse! Enquanto isso esperava, impaciente, a chuva parar, abrigada embaixo da cobertura frontal de uma loja. Um casal de namorados passeava de mãos dadas, rindo à toa, trocando beijos com a freqüência de poucas passadas. Passaram à sua frente e, embora houvesse pouco espaço para a passagem, esforçaram-se para não soltarem as mãos. Ela os observava, inerte, incrédula, saudosa daquele tipo de carinhos. “Logo o tempo passa e ele mal vai ter ânimo para segurar a mão dela”, pensava. “Quando os filhos chegarem, então, aí é que as coisas mudam mesmo. Qualquer coisa é pretexto para sair de casa ou evitar uma conversa, um pouco de namorico”, emendava.

Olhou para as compras, pensara em todos, não esquecera nenhum. Quem lembraria dela?

“Vida de mãe é mesmo um martírio diário”, consolava-se. Verdade, no dia da mulher ganhara uma linda flor; no dia das mães, ganhara um celular que ainda não se acostumara a usar, esse ano havia sido melhor. Mas e nos outros dias, quem se lembraria? E nem justificava mais essa falta de lembrança. O coração se apertara mais, maldita chuva que a prendera lá naquele local para ver o casal feliz passeando de mãos dadas. Estava já tão bem acomodada na sua realidade de mal casada, não merecia o castigo de ver a felicidade alheia! ainda que fosse passageira.

Um vendedor ambulante aproveitou a oportunidade e caminhava por entre as pessoas oferecendo guarda-chuvas a um preço acima do normal. A chuva já não caía tão forte, estabilizara, mas não a permitiria caminhar até a parada, longo caminho, sem chegar muito molhada ao destino. Aquele usurpador ironicamente se tornara sua salvação naquele fim de tarde com ares de noite, por causa da chuva e das nuvens. Comprou o guarda-chuva e caminhava, absorta, pelas ruas. Já não era a casa com suas janelas e goteiras e camas e roupas. Já não eram as compras, a ansiedade em saber se ficariam bem as blusas em seus destinatários, se a roupa de cama agradaria ao seu “digníssimo”. Era ela mesma, carnes e peles e ossos, esposa e mãe, a matéria-prima daqueles pensamentos de caminho solitário. Ela, filha e irmã, confrontando-se àquela mocinha feliz de mãos dadas com seu namorado. Caminhava, os pingos de chuva molhando seus pés calejados, suas pernas doloridas, mas ela não sentia mais isso. Havia outra coisa lhe incomodando infinitamente mais que um calo. Havia nela um coração, pulsante, vívido, inflamado por aquela confrontação, ela que era tanta coisa, e já não se sabia mulher. Sim, ela era mulher, sentimentos, carinhos, cuidados, desejos, curvas. Ela era mulher ainda, mesmo que para seu marido ela fosse só esposa. “Esposa não é mulher”, pensava. “Mãe não é mulher, filha não é, irmã não é”. Mas ela era mulher e essa súbita lucidez lhe causou calafrios. “Eu, mulher?” Melhor ser só esposa, cuidar da casa, preparar a janta. Melhor ser filha, cuidar da mãe internada, de suas roupas, seus objetos pessoais. Melhor ser irmã dedicada, resolver os problemas da família, ajudar financeiramente, ela que estava relativamente bem na vida. Melhor ser mãe, ver a tarefa de casa, velar pela saúde dos filhotes. Ser mulher, nessa altura da vida, seria exigir demais de si. E, no entanto, sua natureza feminina emergiu na tarde de chuva, no espelho da menina apaixonada. Ela, mulher, viu-se transtornada. Já não tinha em mente o caminho e todas as paradas de ônibus pareciam ter sumido do mapa, restando somente o caminho de asfalto e cimento para ela caminhar. Transtornada, ela, mulher. Sentou-se, mulher, na beira da calçada, como se não estivesse bem vestida, como fosse mendiga, as compras espalhadas em seu redor.

Uma lembrança, que era como vertigem, a levou aos seus anos de menina quando, em meio a bonecas e ursos de pelúcia, sonhava com um daqueles príncipes encantados e seus cavalos brancos e suas espadas reluzentes, e a coragem e o amor que os movia quando a mulher amada estava em apuros. Adorava estas histórias que lhe contavam antes de dormir, que começavam com a voz da mãe ao ouvido e continuavam depois nos seus sonhos, onde a amada era ela própria e o príncipe alguém imponente e absolutamente terno, que sempre a envolvia nos braços e a levava a galope para longe do perigo, para um outro mundo mais bonito e encantado do que aquele no qual vivia. Com o tempo e as novas descobertas da juventude, o conceito foi sofrendo mutações. Dentro de algum tempo, o amor passou a ser um homem perfeito, com todas as qualidades imagináveis para um "homem da sua vida": tinha em seus braços a segurança inabalável, em seu sorriso e em suas carícias a ternura de que sua alma feminina e sua pele tinham fome e, sobretudo, um ar de mistério, uma força oculta visível apenas em seu olhar. O amor precisava de um lugar cheio de verde, de ar puro, de flores, de caminho gramado e delineado por pedrinhas harmoniosamente dispostas. Poderia ser também um lar cheio de aconchego, de calor humano, de felicidade. O amor era o lugar onde Deus havia escondido o paraíso, amar era encontrar a Deus e o Éden, era reviver o que Adão e Eva desperdiçaram.

Mas a vida não lhe fez jus aos sonhos. E as histórias de amor de contos de fadas acabaram ficando nos livros de contos de fada ou nos filmes de contos de fada que vendiam muitos ingressos no cinema.

Ela voltou a si depois de um longo tempo de considerações e porquês e lembranças. Em seu rosto escorriam pingos de chuva que nunca pude saber se estavam ou não misturados a alguma lágrima. Nunca pude saber, posto que, depois que ela me contou todas estas coisas na beira do cais, ninguém jamais a viu novamente. Eu fui a última e, talvez, a única testemunha daquela sua lucidez exacerbada que lhe perturbava até os poros e espalhava uma paixão de corar a face pelo seu frágil corpo de mulher.

Ela não estava preparada. Eu não encontro outra razão para o seu sumiço que até hoje me intriga. Mas eu desconfio qual rumo ela pode ter tomado. Só pode ser ela a inspiração para a música Maria, a Louca, do Oswaldo Montenegro. Um dia ainda pergunto a ele.

Augusto Cruz
Enviado por Augusto Cruz em 01/02/2009
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