Um mendigo extraordinariamente sábio, no suspiro três.

Num canto qualquer numa rua qualquer de uma cidade qualquer (sem a mínima importância para o seu entendimento) descansa um mendigo cansado. Usa uma calça velha cinzenta e rasgada, uma blusa também cinzenta (igualmente rasgada), um chapéu marrom amassado e uma sandália velha. Entre todas suas unhas e seus dedos adormece um lodo preto e mal cheiroso, alguns carrapatos se divertem em sua barba branca e seu rosto demonstra cansaço. Segura (com sua mão) uma sacola amarela que contém alguma coisa que não é possível saber.

O mendigo deixa a sacola num canto, se levanta e fala:

-Sou mendigo, mas sou sábio, e sou filósofo. E sou assim porque sei que estou num livro, e o autor quis me escrever assim: mendigo e sábio. Não tem explicação natural para ser um mendigo e ser tão sábio como eu, mas não sou assim porque quero, sou porque o autor quis me escrever desta maneira! Aliás, não estou falando isso por quero, mas porque o autor está me fazendo falar assim (até isso que acabei falar não foi porque eu quis, foi porque o autor quis (isso também)). Tudo está escrito (inclusive isso (inclusive isso (inclusive isso também (e isso (...))))) e tenho consciência de que estou num livro. Você aí está pensando que existe livre arbítrio? Se formos pensar de uma maneira, pode se dizer que exista. Mas é um livre arbítrio não tão livre como o nome quer dizer, na verdade pensamos que é livre, mas não. Tudo que você faz não é porque você quer fazer (assim como eu), mas porque você está num livro e está sendo escrito. E você pensa que você fez porque quis ou porque teve algum motivo lógico que o fizesse fazer. Esqueça isso. Repito: você está num livro, é personagem de um livro, assim como eu e assim como o autor desse livro (o autor desse livro é personagem de outro livro), e o autor do autor, e o autor do autor do autor do autor do autor, e assim por infinito. Darei um exemplo real: você aí que está me lendo neste momento. Você não está me lendo porque quer, mas porque está sendo escrito num livro e o autor desse livro está descrevendo que você está me lendo. E se agora você quer me desafiar e pensar "Já que estou sendo escrito como este mendigo louco diz, quero ver se ele realmente está certo e deixarei agora mesmo de ler. Se eu deixar de ler, ele está errado e eu estarei fazendo o que realmente quero!". Aí você está enganada (o), porque você deixar de me ler também foi um ato escolhido pelo seu autor.

Pegou na sacola amarela uma folha. Tinha algo escrito. Leu em voz alta para quem quisesse ouvir:

Abram os olhos!

Somos pura letra num papel escrito

Num papel que não existe livre escolha

Onde o que está dito, está dito!

E nesse momento

Alguém nos lê!

Não falo isso sem motivo

Somos pura letra num papel escrito

E não falo isso à toa

Porque fui escrito para falar isso,

E fazem a feitura para enganar com a própria verdade

Porque enganar com a verdade é mais convincente

(falar isso também está escrito)

E de novo repito:

Somos pura letra num papel escrito

E tudo que falo agora já está dito,

E como vocês estão agora já está dito,

E quem morrer amanhã já está dito,

E quem nascer hoje já está dito,

E quem se casar no ano seguinte já está escrito!

E quem escreveu o que está dito já está dito, é infinito.

E repetir de novo já está dito,

Somos pura letra num papel escrito

Não fazemos porque somos livres,

Mas porque está dito, está escrito.

A terra é só um livro

E não sabe quem faz

Que em suas palavras criam-se vidas escritas

E que estas vidas somos nós escritos

Que tudo isso já está dito escrito

E que se encerra com um ponto final(escrito).

Calor do cão
Enviado por Calor do cão em 21/04/2006
Reeditado em 22/04/2006
Código do texto: T142978