O SONHO DE DORITHEUTIS

O SONHO DE DORITHEUTIS

FlavioMPinto

Era um dia machorrento de verão em Sant’Ana. Sol forte, quente, sem vento, céu azul acomodado.

O povo suava ás bicas e a água do Registro consumida a cântaros.

Ninguém fazia força para nada nem para sair das sombras das parreiras do fundo de quintal. Era época da colheita da uva e sombra fresca. Moscatel, branca, e a deliciosa pretinha, pequenina e doce faziam a festa dos habitantes da cidade.

Doritheutis Nei, cabelo desarrumado, camisa semi-aberta, pança lustrosa á mostra, andava inquieto de um lado a outro. Tinha decidido candidatar-se a vereador.

“ Mas como, sempre disseste que lá só tem ladrão?”

“ Mas como, Doritheutis, só sabes fazer greve?”

“ Nunca trabalhaste ou pegaste no pesado?”

“ Tás sempre encostado no INAMPS!”

“ Passas só mamando no Sindicato!”

“ O que queres na Câmara?”

Eram as perguntas mais comuns que ouvia. Não dava bola. Confiava no seu taco e estamos conversados. Claro, dominava os bastidores de todos os cabarés e boites da fronteira como ninguém. Sempre estava na Maria Gorda conferindo e dando expediente. Além disso era remelexo de uma murga em Rivera. Não contando que era doble chapa por parte de pai e jubilado no Uruguai. Nunca trabalhara de fato lá, apenas uns dias na oficina do Pintos.

Na campanha fugia de tudo que era debate. “ Só me pronuncio na tribuna e estamos conversados” era seu bordão e ninguém sabia de sua plataforma.

Não é que consegue se eleger por causa da legenda?

E quando se deu por conta já era presidente da Câmara de Vereadores.

Imediatamente nomeia D.Joanete, sua mãe e Ristirona, sua gostosa vizinha que diziam ser algo mais, para oficiais de gabinete. A Oposição , da qual seu partido fazia parte, nem chiou por esses atos.

No seu primeiro discurso relembrou a família. O pai, o velho Juan Tararira, biólogo, gastou parte de sua vida procurando mariscos no Batuva, que acreditava ser um antigo lago salgado e prolongamento dos Andes. Recordou também sua infância e seus irmãos: Alligator Carlos, o Coris Julius Adão, a Atherinella Joaquina, gêmea com Coris, e a Doratina Cetácea. O pai sempre dizia: o Doritheutis será político, o Coris advogado e o Alligator médico. Já as gurias serão juízas. Imagina Dra Atherinella , te mete? Tivera uma bela infância e agora estava ali naquele cargo de confiança. Seu sonho era montar um museu marinho no Batuva com vista submarina, semisubmersa e passeio de aerobarco. Quando solteiro, seu pai achou um esqueleto que acreditou ser de um pingüim. Mais tarde provou-se ser de Avestruz mas não se deu por vencido.

O sonho de Doritheutis, obviamente, era montar o desejo do pai falecido.

Pediu para um amigo de lutas, o Paniago, mais conhecido como o Gogó do Wilson-Armour, mais pelas borracheiras que tomava no trajeto do ônibus quando saía do emprego de “empurrador de touros” no Armour, para fazer o projeto.

“ Mas que projeto vou fazer, Dori?”

“ Projeto meu, cara. Pro meu museu.” responde Doritheutis.

“ E eu é que bebo, não é Dori?”

“ Toca ficha, pois até uma grana vai rolar nisso. Me aguarde, índio véio. Vamos aproveitar que quem manda sou eu. Tá tudo já aprovado. É tudo comigo. Vou usar uma verba que tá sobrando.”

Mas não deu outra. Mal recomeçaram as sessões e a bancada da oposição caiu em cima do Presidente.

“ Mas o qué que tu quer, Doritheutis Nei?”

“ Eu vô fazê um museu e pronto!.”

“ Isso é um abuso. A cidade mal tem dinheiro para calçamento e coleta de lixo e o presidente da Câmara quer um museu? Isso é uma afronta”, retruca a oposição no plenário.

“ Com que verba? Mas vai te deitar, vinagre!”

“ Vou dar um canetaço e ver quem ganha. Todo ano sobra muita verba com a diminuição do número de vereadores, senão eu ponho a minha tropa em campo!” ameaça Doritheutis.

“ O quê, vais colocar aquele bando de borrachos que te elegeu onde?”

“ Bobeia coloco aqui dentro e cagamos vocês de pau e pronto. É a força do povo contra a prepotência capitalista.”

A situação ficou complicada.

Nesse ínterim, Doritheutis já havia assinado uma série de decretos legislativos autorizando a venda de bebidas nos pontos de ônibus, e até na Estação. Criara até o PINGONIBUS, um ônibus que recolhia os pinguços no fim da tarde e da noite e os deixava tranqüilos e felizes nas suas residências. Fizeram até um Fórum Social Internacional para tratar dos avanços dessa iniciativa. E a cidade cada vez mais infestada de bêbados de todo mundo. No entanto, o nome dela crescia no cenário internacional por sua tolerância a essa prática. Até bebedouro de cachaça queriam.

Indústrias para cidade nada.

“ Mas como vou colocar um empreendimento numa cidade de pinguços? “ falavam os empresários.

Enquanto isso, o tempo legislativo passava e Doritheutis via seu projeto não andar e cada vez mais bombardeado.

A oposição não largava o pé do presidente da Câmara. Este, já se desentendera com meio mundo, menos com seus apaniguados a quem distribuía afagos, cargos e verbas. Mas ainda se sentia prestigiado ao ser tratado por “Dr Doritheutis”.

Gogó acaba de concluir o projeto e, antes de levá-lo ao gabinete do Doritheutis, “dá uma boa bicada” numa branquinha.

Mal sobe o primeiro degrau da escada, tropeça e cai por sobre a garrafa que trazia debaixo do casaco quebrando-a e lavando o projeto com o liquído precioso.

Dorotina Cetácea, que passava por perto e que vinha trazer uns sonhos para o café do irmão, ajuda-o a levantar-se do meio de cacos de vidro e cachaça. Tudo molhado. Inconsolável, vendo todo material perdido e cheirando a cachaça, Gogó ameaça atirar-se pela janela a ter de justificar seu ato ao amigo. Mas foi agarrado e consolado por D.Joanete que prometeu ajudá-lo a recuperar o trabalho.

“ Está tudo no computador, não é Gogó?”

“ Que computador que nada, não gosto destas coisas. Fiz tudo á mão no papel de pão da padaria. Não estás vendo? Saiu tudo desta cabeça...”

“ Sim , desta cabeça encachaçada, Gogó. Que falta de responsabilidade, cruzes! Fizeste o projeto a trago, não é?”

“ É, D.Joanete, mas não me sacrifique, tá bom?”

Seguiram direto para o gabinete do Dori.

Quando chegam lá, fedendo a álcool, ainda molhados, o encontram cabisbaixo e inconsolável . É que o prefeito, no apagar das luzes do ano, resolvera criar, 3 novas secretarias para o município com as verbas que sobram na Câmara.

O sonho do Doritheutis Nei findava.