UM DIA DEPOIS (DELE) - CAP. 5

Ele acordava sempre com uma dor de cabeça, e ainda queria saber de onde vinha. Vinha provavelmente dos pensamentos sombrios que sempre tinha, antes e depois de acordar. Mas não se importava com isso, não se importava mais. E hoje não era um dia comum. Era um dia novo e ele tinha sonhado, de novo. Já conseguia se imaginar sonhando todos os dias.

Como num dia atípico, resolveu tomar café com a mãe.

A mãe sempre ocupada lendo seu jornal, ou assistindo sua televisão, como se não quisesse ficar desocupada, ou sentir-se inútil como sentia-se ao dormir.

A mãe cumprimentou-o já sabendo que sua resposta seria a mesma de sempre. Naquele dia a mãe deixou o jornal de lado ao ouvir "Bom dia, mãe. Tudo bem?". A mãe espantou-se, ela tomou café mais rápido do que tomava normalmente. Ela sentiu algo lá dentro batendo mais forte e nem sabia o que era, mas sentiu.

Ele tomou o seu leite, frio como sempre, jogou um biscoito para o gato. Este nem com os olhos acompanhou a trajetória do agrado. Continuou na mesma posição que estava há dias, parecia até meditar. Gato meditando? Quem sabe? Não era um dia comum na casa.

Prosseguiu sua jornada. Foi a pé para a escola, decidiu respirar um pouco de ar. Que logo foi infestado pelo cigarro que acendia já as sete horas da manhã. Foi ouvindo sua música, como sempre fez, pisando apenas nos espaços brancos da calçada. Cumprimentou a mulher que ficava na quitanda. Ela estranhou, mas logo se distraiu com outra mosca.

Foi a pé, mas sentia que voava, e como queria voar. Queria experimentar outras coisas e por que não voar?

Lembrou da esbarrada do dia anterior com a garota linda, pensou que talvez pudesse revê-la. Nem que fosse para uma outra esbarrada. Dessa vez sentia-se com mais vontade de conversar.

Tinha alguma vontade de conversar e isso já bastava para seu ego.

Vasculhou a entrada da escola e não a encontrou. Resolveu procurar na lanchonete, como quem não quisesse nada. Talvez um lanche. Um lanche lhe cairía bem. Pegou uma bala que estava há alguns dias no pote da mesa da sala , para disfarçar o hálito matinal. Encontrou-a sentada na segunda mesa depois da árvore. Ficou parado, esperando que ela olhasse e o reconhecesse. Queria se apresentar, conhecer um pouco, queria mais tirar o peso de ter sido ignorante e arrogante como foi durante toda sua vida.

Hoje era um novo dia, era um dia atípico, hoje ele era sociável.

Ela enterrada com a cara na bolsa, fingindo que não o via, logo ergueu a cabeça e sem esboçar muita surpresa, como ele queria, lhe sorriu. Cumprimentou-o, puxou assunto. Era seu dia de sorte! Tinha tantos assuntos pra dividir com alguém que já pulavam pela língua a fora.

Ela teve de ir embora, estava atrasada, largou metade de um lanche lá e ele resolveu sentar-se.

Mascarando sua decepção. Viu a moça ir em direção à classe.

Ela andava graciosamente, nem era para ele, para ela mesma. Ela gostava de sentir-se leve. Ela tinha um ar de bailarina, e hoje, num dia comum, queria afundar no livro de química e de lá tirar uma poção para livrá-la do tédio. Tédio que nem ela sabia de onde vinha.

O tédio está em nós mesmos, a partir do momento que admitimos que ele está presente.

Com ela não foi diferente, logo esqueceu da vida pensando em polígonos, volts e presentes de casamento.

Ricardo R
Enviado por Ricardo R em 15/02/2009
Reeditado em 01/06/2009
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