Selena e Heliano *

     Selena e Heliano eram jovens noivos que dividiam uma modesta casa em um bairro próximo ao centro da cidade e se completavam como a lua e o sol. Selena conservara seu romantismo dos últimos anos da escola. Heliano lia Marx quando entrou para o grêmio estudantil, na mesma época. Selena gostava de assistir dramas. Heliano preferia os documentários. Selena não perdia as novelas. Heliano, os noticiários. A estante de Selena era cheia de pelúcias e lembrancinhas de viagens. Na estante de Heliano, fileiras de livros, de tudo um pouco.
     Certa noite, durante o intervalo do noticiário para a novela, enquanto jantavam no sofá, Selena resolveu contar a Heliano sobre uma novidade que aprendera no trabalho:
     — Sabe, hoje de manhã, no mercado, o gerente chamou os funcionários e passou um vídeo sobre a história de um homem que tinha muitos planos na vida, e, em um terrível acidente, perdeu os dois braços. Ainda assim, ele persistiu nos seus sonhos e alcançou o sucesso. No final, o filme mostrava uma mensagem que dizia que nunca devemos desistir de nossos sonhos, que todos nós podemos concretizar o sonho que quisermos, querermos, pois só depende de nós.
     Heliano terminou de engolir sua última garfada, torceu a boca e resmungou:
     — Mas que bobagem...!
     Virou o rosto para sua noiva, acariciou suavemente seu joelho e continuou:
     — Você sabe por que o seu gerente mostrou a vocês este vídeo? Para que fiquem adestrados e dóceis, enquanto é o dono do mercado quem realiza os sonhos dele mesmo. Você acha que as pessoas não conseguem o que querem porque elas desistem de seus sonhos? E você acha mesmo que quem consegue ter sucesso só contou com sua persistência pessoal? Se o gerente quisesse que vocês realizassem seus sonhos, por que não dobra o salário de vocês e lhes dá uma jornada de quatro horas diárias para que vocês tenham tempo e dinheiro de realizar seus sonhos? Mas não. Enquanto vocês trabalham por um salário mínimo, o dinheiro que sobra é a realização dos sonhos do dono do mercado.
     Heliano achava Selena muito crédula. Selena achava Heliano cético demais. Às vezes, quando Selena ouvia seu noivo falar, ela se lembrava dos amigos chatos que Heliano tinha no grêmio estudantil, uns que não iam à igreja, e falavam mal dos banqueiros, e achavam que podiam iniciar uma revolução a qualquer momento.
     Às vezes, quando Heliano ouvia sua noiva falar, ele se lembrava das amigas bobas que Selena tinha na escola, umas que esperavam encontrar seu príncipe encantado, e que tinham medo de histórias de terror, acreditavam em superstição e não acendiam velas depois do sol se pôr. Estavam sempre voltando para seus namorados mulherengos porque ao menos deles recebiam atenção e carinho, acreditando em suas promessas de remediação.
     Selena contestou:
     — Mas e os que conseguem? Não existem pessoas que conseguem?
     — Sim, querida. Mas eles se realizaram com a ajuda de inúmeros fatores que essas histórias não revelam. Essa gente empresarial divulga para os empregados esses vídeos que dão a falsa impressão de que todos conseguem, mas que, na verdade, só uns poucos conseguirão. Se fosse acessível a todos, você não acha que a maioria das pessoas no mundo já seria bem-sucedida? Por acaso você acha que eles iriam lhes passar um vídeo sobre os que não conseguem? Sobre os miseráveis explorados que não realizam seus sonhos? Eles lhes passam esses vídeos de pessoas de sucesso para que vocês não venham a pensar que, neste mundo, o grande sucesso de poucos é a derrota dos sonhos de todos os outros. Não dá para cada pessoa do mundo conseguir o que quer. Isso é uma ilusão!
     — Mas não custa sonhar — retrucou Selena. — Nós sonhamos como um futuro lindo juntos, e se não sonhássemos, nossa vida seria muito cinzenta.

     No dia seguinte, no mercado, enquanto Selena conferia o troco do seu caixa, o gerente foi até ela e lhe disse:
     — Olha, a faxineira faltou de novo. Então você não ficará no caixa hoje. Vai trabalhar na faxina.
     Quando o gerente virou as costas, Selena chamou-o de volta e respondeu-lhe:
     — Desculpe, mas eu fui contratada para ser caixa e não faxineira. Além do mais, eu já lhe avisei que estes produtos de limpeza me dão alergia.
     — Mas você tem que pensar no mercado, você agora é parte desta empresa. Mostre seu valor e dedicação que, daqui a uns cinco ou dez anos, poderá subir na empresa.
     — Pensar no mercado? E o mercado pensa em mim? Eu vejo vocês dispensando empregados mais dedicados do que eu só para contratarem funcionários de salário mais baixo. Agora ouça isto: Ou você me dá um dia de folga para cada vez que eu trabalhar em outra função, ou as autoridades irão ficar sabendo que vocês andam descumprindo o contrato dos funcionários.
     — Ora, ora, então é assim?
     — É, vai ser assim. Vocês não querem que realizemos nossos sonhos? Este é meu sonho: ser mais valorizada. E então, Como vai ser?
     O gerente pensou com seus botões e resolveu:
     — Você prefere folgas às sextas ou às segundas?

~ ’’ ~

     Durante o seu horário de almoço, Heliano passou pelo sebo próximo do seu trabalho para ver se tinham deixado novas doações, quando um vendedor ambulante lhe parou na esquina, oferecendo-lhe balas. Heliano fitou o ambulante e recordou-se:
     — Perdoe-me a franqueza, mas não era o senhor que esmolava naquela praça ali?
     — Sim, senhor. Era eu mesmo. Mas andei pensando na minha filhinha. Eu quero dar uma vida melhor pra ela, sabe. Agora vou vender balas, juntar um dinheiro. Mas no futuro quero ter meu próprio negócio, uma barraquinha de lanches.
     Heliano comprou uma bala do vendedor ambulante, segurou firme seu braço por uns segundos e, olhando em seus olhos, saudou-o:
     — Tenho certeza de que você consegue. Nunca desista de seus sonhos — e foi-se de volta ao trabalho, reparando na branca lua que pairava de dia.

Publicado em “Mulheres e seus amores”, disponível aqui em formato E-Book.
Vitor Pereira Jr
Enviado por Vitor Pereira Jr em 17/02/2009
Reeditado em 15/09/2021
Código do texto: T1444613
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