O PRÓXIMO

Deus e seu arquirrival brincam de cabo-de-guerra e, ao que parece, as forças divinas estão cedendo, cedendo... cedendo... Será que o Diabo consegue pregar mais uma das suas? Deixará o adversário a ver navios no labirinto da onipotência? Não. Agora a pugna se equilibra. Esperem... Ah!!! de novo! É sempre a mesma coisa! Uma sucessão de ondas! Ondas... Parece que agora entendi: na dimensão do espírito, a existência vagabundeia em altos e baixos, tal qual na da carne.

Cidade de Deus, São Paulo, praça do centro comercial. Um homem, que ia devagar, estacou e consultou o relógio do celular. Quinze horas.

Era um tipo alto e esbelto, de cara rosada quase escondida por uma barba meio amarela, compacta e bem aparada. Cabelo alourado, penteado para trás. Ali, aguardava, num pé e noutro, sacudindo levemente a valise que pendia duma mão. A inquietude era de quem tinha sérios assuntos a resolver e não podia esperar muito.

O tempo se arrasta para quinze e trinta. Qualquer coisa o incomodava. Tinha um tique de morder o bigode, este que era de impor respeito cujos pelos, após prender a valise entre as pernas e puxar do bolso um pente, a todo instante, cuidadosamente desembaraçava.

Devagar, puxou a gravata e correu as costas do pente sobre ela, de cima a baixo. Ajustou o nó. Tudo isso como para não ver o tempo passar e afastar o estresse, mas podia ser só para apurar a beleza. Devolveu o pente ao bolso, ocultou a gravata e ia alinhar o terno quando o celular tocou. Alô?... Ouviu por dez segundos a voz no aparelho, ao que respondeu Ok! Alinhou o terno. Inclinando um pouco a cabeça e revirando os olhos para o peito, fez um esforço por fitar-se pelo menos em parte, e pôde ver o negro retinto do linho que lhe cobria a pele rósea a confundir-se com o negro espelhado dos sapatos. Percebeu-se bem composto. Tomou a valise, que caíra no chão, sacudiu os ombros, pareceu acenar para alguém e saiu devagar, mas em direção oposta à que aparentemente acenara.

Como não se tem nota de quantos passos botam um cristão no céu, cada qual procura dar quantos lhe forem possíveis. E é assim que aí vem a beata Esperança, no seu passo lento lento mas decisivo. Dobrou a esquina. Deixou a rua São Francisco e tomou a Santa Maria dos Aflitos, na qual Salomão se deteve por algum tempo. Pela calçada, já na praça, ela caminha até a metade da quadra e para. Vira-se de lado, olha, dá um jeito na bolsa prendendo-a sob o sovaco, vê que é hora e move a lenta perna para o asfalto da rua movimentada. Estranhamente sente-se quase erguida do chão, e se assusta.

— Calma, tia! Aqui não. Vamos até lá — ela viu, sobre a alça da valise preta que quase lhe acerta o rosto, um dedo trêmulo apontando para a esquina — Ajudo você a atravessar.

— Oh! Filho, obrigada!

— Mora distante?

— No bairro Todos os Santos...

— Longe um bocado, não!?

— Um bocado, mas já me acostumei. Como se chama?

— Por que não vai de ônibus ou de táxi? — disse o moço, após um barulho com a boca em forma de resposta, mas que Esperança não pôde entender.

— Sinto-me muito mal, andando de ônibus... é tão apertado que me falta o ar... e de táxi gasto quase todo o dinheiro da... — olhou para os olhos azuis do homem, que, apesar de refletirem ternura, não a inspiraram dizer a verdade, e negou-se a dar a entender que vinha do banco — Não... o melhor jeito é mesmo ir e vir a pé, sem falar que o médico me receitou caminhadas, preciso exercitar as pernas, meu filho.

O sinal vermelho aparece para os carros e os dois pisam na faixa branca. Conduzida pelo braço, a senhora se regozija com a ajuda que Deus provera; um homem de muito bom coração... só o Senhor pode recompensá-lo por essa gentileza... mais ninguém foi capaz de perceber e acudir uma pobre velha necessitada... glória, glória, glória... E seguiam, ela quase pendurada no braço do homem, a murmurar elogios àquele anjo e a enviar agradecimentos a Deus.

Atravessam e seguem pela beirada da praça Papa João XXIII, ora tendo que abandonar o passeio e driblar os carros estacionados, tantos eram os transeuntes.

Cônscia das normas regentes da ética social e, sobretudo, da espiritual, a beata não perdia tempo. Com palavras retribuía ao cavalheiro a cortesia, mas sem se esquecer do agente motriz daquela bondade.

As palavras elogiosas e os pensamentos de gratidão aos céus são surpreendidos por um movimento estranho do homem:

— A bolsa, dona!

— Ãh?!

— A bolsa!! E faça uma cara de felicidade, sorria, disfarce. — ele cochichou alto na orelha dela.

— Que bolsa, moço? — soluça, com a cara transfigurada.

— Ora, que bolsa! Não se faça de estúpida, velha maluca! Quero a bolsa com o que tem dentro; será que nunca foi assaltada antes?!

Em seguida a outro soco, o indivíduo deixa cair a valise. Leva a mão livre à cintura e puxa o que parece um revólver e, com alguma dificuldade, por baixo do paletó, pressiona contra as costelas da mulher, dando a entender a quem os olhasse que a soerguia para facilitar-lhe os passos.

— Só tem o dos remédios, filho... ai! Não faça isso, não força, moço, que me corta o ar!

— Não viu na TV que não se resiste a assalto, dona?! Largue a bolsa, agora, ou lhe afundo o quengo! — falava a voz surda, desesperada, no ouvido dela enquanto com a outra mão ele apanhava a valise.

Já arrastada pela alça da bolsa, Esperança afrouxa a mão trêmula e, estirada ao pé da guia, entre dois carros parados, vê sua pensão escapar com o sujeito, que se perde na multidão.

Lacrimejando, solta um dolente e desalentado murmúrio...

— Meu Deus, meu Deus! Por quê?... Sendo eu uma das tuas!... Por quê!?

Uma sirene soou do outro lado da praça e em instantes um policial colhia informações sobre Salomão, que nunca mais foi visto.

Antonio Leal
Enviado por Antonio Leal em 20/02/2009
Reeditado em 02/05/2009
Código do texto: T1449818
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