COINCILAGRE

A arte dos sons tem seus mistérios e maneiras distintas de comunicação. Em que pese os diversos gêneros e veículos de expressão musical, todos acham corações para acalentar, mesmo os veículos aparentemente ultrapassados pelo tempo.

E no tempo, muitas interrogações não conquistam respostas de todo satisfatórias.

–– No meu velório quero uma banda de música tocando, minha filha –– disse João Bernardes à esposa.

Para esse militar do exército, acostumado a vibrar com a energia das Marchas e Dobrados nas formaturas, homem habituado ao ribombar dos tambores e aos gritos de guerra da tropa a ecoar nas paredes do quartel, não lhe era custoso explicar a todos por que fazia questão de tornar público que as músicas saídas dos instrumentos da Banda tinham destino singular.

–– Com a música, companheiros, sinto pular no peito meu coração de sentinela da pátria. É como se o som e toda vibração vinda dessas abençoadas campânulas se incrustassem aqui, ocupando este espaço, olhem (e batia forte no peito), até explodir nesse brado gigante: “VIVA O BRASIL!”. Não adianta, sem Banda não se é militar, não se vive... tampouco se morre. Sem uma no meu funeral, por exemplo, não vou ao cemitério. Ontem mesmo deixei Eliza ciente disso.

Divulgava essa particularidade a seus pares e subordinados e até a alguns superiores, numa redundância incontida, pois era visível, nas formaturas, o efeito que os sons da Banda provocavam nele; algo como se as notas perpassassem suas entranhas, vitalizando o corpo, que se convertia em patente expressão de força e poder. Isso envolvia o homem a ponto de aflorar na pele, em calafrios e marejo nos olhos.

A esposa, como nos outros dias da vida a dois, manteve o mesmo comportamento no que respeita à recepção do marido na chagada do quartel. Não levou a sério o que dele ouvira na véspera. Desse modo, após inteirar-se do dia do esposo, no que lhe competia saber, admira-se de apanhá-lo um tanto meditativo e pergunta o que tem ele.

–– Nada, filha... É que estou alegre.

Eliza, conquanto fosse dez anos mais jovem, seus vinte e três anos eram maduros o bastante para notar a estranheza de J. Bernardes. Serve o jantar e senta-se à mesa junto ao marido. Quando viu que o homem não respondia mesmo aos apelos de uma alma curiosa, inquieta-se e, acariciando-lhe a face, torna a inquirir sobre o modo estranho com que este olhava para as coisas dentro de casa, e, sobretudo como a fitava naquele dia. Quis saber por que ele estava assim tão disperso.

–– Já disse do que se trata, estou mais alegre, hoje.

–– Não pode ser verdade. Que modo de demonstrar alegria! –– disse, pondo mais suco no copo dele.

–– O modo não tem muita importância, meu bem! –– toma um gole do líquido e põe a mão no ombro da mulher –– É como lhe falei ontem, no dia em que eu bater as botas não quero tristeza, mas alegria, muita alegria em casa. É só isso. Revelei a você só agora porque imaginava mesmo que essa seria sua reação. –– deu um beijo no rosto dela e continuou –– Alegria ao modo militar... com bumbos e taróis rufando; trombones, bombardinos e saxofones em são desafio aos cornetins e às clarinetas, assim como os outros maravilhosos instrumentos da Banda se pronunciando... todos, juntos em minha despedida...

–– Besteira! Após a morte só se tem direito a sete palmos chão abaixo, homem... quando se tem! Mas não me fale disso, que sinto náuseas. Ademais, prefiro morrer primeiro –– e bateu três vezes na madeira da mesa.

–– Pois está dito –– acentua o sargento, coçando o queixo –– Está dito, e olhe que vou cobrar de quem estiver vivo.

Terminam o jantar e vão estar com as crianças, que brincavam na varanda.

Passam-se anos. Nascem mais três filhos do casal, alterando-se para cinco o número da prole. O sargento J. Bernardes é aposentado e muda-se de Resende, onde serviu nos últimos anos da carreira, para um lugarejo comprimido entre colinas, no Pico das Agulhas Negras, por nome Pedra Selada.

Pedra Selada é o lugar que a paz parece ter escolhido para refúgio. Possui uma igreja, à frente desta um cemitério, e um posto médico, locais cujas distâncias entre si não passam dos setenta metros, em tal disposição que, se traçadas retas entre os três pontos, desenhar-se-ia um triângulo equilátero.

Dispõem-se nos arredores uma escola, uma quadra esportiva, uma caixa dos Correios, um cartório, um telefone comunitário e um número aproximado de duzentas casas, amarelecidas pela poeira da estrada que o tropel de animais e um ou outro carro fazem subir.

O povoado dorme e acorda a cada dia embalado pelo murmúrio de um riacho que corre paralelo à estrada, espargindo gotas de ninar, quando se precipita por ali numa discreta cachoeira.

Nesse paraíso terrestre em que a principal música é a dos pássaros e das águas, o militar leva, sossegado, ao lado da esposa e de duas filhas ainda solteiras os últimos dias de vida. Trazendo sempre à lembrança da mulher o pedido feito anos atrás; por sinal, um pedido com feição de ordem.

–– Deve ser assim –– lembrava ele mais uma vez, recostado numa cadeira preguiçosa no pátio da casa ao tirar a xícara de café da boca –– Com uma Banda de música tocando, que é para quebrar aquela cara de velório que a ocasião tem, entende, Eliza!?

Numa tardinha, com a vista perdida no horizonte, sorvendo a paz e a beleza dos últimos raios de sol no cume dos montes, o ex-sargento enfarta e morre. Tinha cinquenta e oito anos, apenas. Deixa no mundo a esposa e cinco filhos.

Após a noite conturbada do velório, cedo, começa a corrida da viúva por realizar o último desejo do marido.

Às quatorze horas, tempo demasiado elástico para a tolerância do cadáver, Eliza vence outra vez os mais ou menos vinte e cinco quilômetros de estrada esburacada por entre serras e chega ao povoado, exausta e em pranto, inconsolável.

Explica que chegara a Resende só ao meio dia, em vista de um problema no carro. Tendo ido ao quartel em que ele serviu nos últimos anos, a Banda estava de férias. Procurada a corporação musical da Polícia, estava ocupada em missão fora do quartel. Contou ainda, que, já em desespero, apelou para uma Banda de música civil, a qual também não pôde atender, sob a alegação de não ser possível reunir os músicos de um momento para outro.

–– Minhas filhas, –– abraçando as moças, com o rosto lavado –– não vamos atender ao último desejo de vosso pai. Não tenho mais pernas nem fôlego, nem a quem dirigir palavra...

–– Dirija-as a Deus, mamãe, e tenha calma! Papai há de compreender. A senhora fez o impossível! –– ouviu da mais velha.

Nesse ínterim, o filho e as duas filhas casadas chegam, aumentando os lamentos e o choro.

Uma hora mais tarde, os vizinhos mais chegados continuam na luta por acalmá-los, e advertem de que passa da hora do enterro.

Resolvem. Fechado o esquife, quatro dos sete homens que lá estavam, tomam as alças e saem porta afora, rumo ao campo santo. Atrás, com pais-nossos, ave-marias e lágrimas, seguem os demais, que, somados, deviam dar cerca de cinquenta pessoas, entre adultos e crianças.

Percorrido pouco mais de um quilômetro (porque moravam fora do pequeno centro do povoado), chegam ao beco que dá para o cemitério...

* * *

Na vida brotam circunstâncias que nos levam ao devaneio, ou, no mínimo, a criar um nó nos neurônios. Entre fatos espantosos e maravilhas, curiosidades que ligam terra e céu, há aqueles que jamais querem ser explicados, e por isso mesmo preferem atender pelo nome de milagres, mistérios que confirmariam a luta de Deus com o Diabo ou do Diabo com Deus, a existência de um “lado de lá”; mas estes mesmos aceitam receber o nome de “coincidências”, evidenciando a luta da razão com o espírito ou do espírito com a razão, o “lado de cá.”

Milagre... coincidência... eles agregarão algum dia o mesmo significado? Terão sobre si pareceres unânimes?

–– Não. –– alguma voz poderia dizer –– Porque milagre e coincidência são mesmo distintos, têm essência diversa; há, porém, circunstâncias em que uma “coincidência” possa bem ser um milagre, mas nenhum milagre pode ser coincidência.

–– Sim. –– é esperado que outra voz replique –– Porque muitas coincidências dão-se a chamar milagre, apesar de nenhuma coincidência ser milagre; poder-se-ia era chamar todo “milagre”, coincidência.

–– Que desatino é esse? –– possivelmente retrucaria outra voz –– Isso não é assunto que se discuta, não se chega a nada!

E não duvidemos que outras réplicas e tréplicas venham a ganhar vida.

* * *

Tão logo dobraram a viela de acesso ao núcleo do lugarejo, deparam com um grupo de militares se organizando no pátio da igreja.

Entre o véu de lágrimas a mulher divisou sobre cadeiras instrumentos musicais, e supôs estar tendo a visão celeste de uma Banda de anjos enviada por Deus. Passa um lenço nos olhos e vê que aquilo é real. Corre até o homem que lhe parece o chefe e prostra-se-lhe aos pés.

–– Maestro! Maestro, pelo amor de Deus, toque para o meu marido.

O regente, que se achava de costas para o singelo cortejo, respondeu que ela contivesse a emoção, pois logo tocariam para todos, em poucos minutos, e seu esposo certamente seria também agraciado e... que se levantasse.

Eliza não se contém. Salta ao pescoço do militar, fazendo-o girar nos calcanhares em uma pirueta formidável, de modo que este viu do que se tratava. A cena bizarra arrancou risos, logo contidos, em razão do que os músicos viam ao fundo.

–– Toque para o meu marido, pelo amor de Deus! –– foi o berro ouvido.

Outro giro nos calcanhares, este por impulsão própria. Arregalados os olhos, erguidos os braços, a batuta faz ecoar nos penhascos o som de um vigoroso dobrado, enquanto o ataúde se apruma na rua estreita, à frente da igreja.

Em meio à música, eis que surge de uma ruela um Capelão Militar. Vinha com um facão à mão e, informado da situação e de que o pároco da região achava-se fora havia dois dias, não titubeou, pegando carona dos músicos, encomenda o defunto e abençoa a família, não sem antes persignar-se. Tal foi o fervor nos gestos do eclesiástico que a Banda quase para de tocar para rir. Porque aquela ferramenta em lugar da bíblia, tão pouco solene quanto grande, empunhada pela mão direita, subindo e descendo, incansável a fazer cruzes no ar, dava ao padre mais a aparência de quem ia esquartejar o morto que ordenar alguma bênção.

Tocados outros dobrados e canções populares, a viúva, assim como o pequeno cortejo fúnebre já não eram os mesmos. A alegria, visível na face da mulher, contagiou o grupo, que até esboçava paços de dança.

Depois de uma boa meia hora, no intervalo de duas músicas, Eliza, de tão realizada por conseguir fazer a vontade do esposo, agia como se não o tivera perdido. Agradece infinitamente aos músicos e segue, feliz, por um beco que leva ao dormitório eterno, a uns setenta metros de onde a banda prossegue tocando.

Em face de tal circunstância, desnecessário se faz assinalar com detalhes que a cara de velório do velório de J.Bernardes não foi quebrada... foi esmigalhada.

A coincidência, ou milagre se deu porque militares da Academia Militar das Agulhas Negras - AMAN (Resende – RJ), em conjunto com os do Quinto Batalhão de Infantaria Leve - 5º BIL (Lorena – SP), naquela semana, desenvolviam na região um ACISO (Ação Cívico-Social –– atividade em área rural, que ultrapassa os limites dos treinamentos estritamente militares, voltando-se também para as necessidades básicas da população do lugar), e coube à Banda de música paulista, naquele dia, deslocar-se mais de cem quilômetros para alegrar os corações com a magia de sua arte, todavia, sem qualquer aviso prévio da morte de alguém, vindo, contudo, a calhar com o dia do sepultamento do Sargento J. Bernardes.

Esta extraordinária missão da Banda de Música do 5º BIL não só deu o que falar como o que pensar.

A fé e a razão outra vez invadem o cenário, semeando seus gérmenes e gritando: Milagre! Coincidência! Ao que nenhum juiz pode emitir veredicto.

Antonio Leal
Enviado por Antonio Leal em 20/02/2009
Reeditado em 21/04/2009
Código do texto: T1449829
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