Por Razões Sentimentais (Ela)

Chegou bestialmente linda, andou pela casa, pegou uma garrafa e serviu-se de whisky. Olhou para ele com um ar de irônica, caminhou até a poltrona e disse:

 

-Você deveria permanecer sempre assim: Intacto. Congelado como um boneco de neve ou como manequim pelado. Quando te conheci você era tão simples que eu até cheguei a acreditar em amor de verdade.

 

Mas aí as coisas vão mudando, os dias vão passando... E a gente começa a notar só o que tem de errado. Eu tentei te entender! Tentei apreciar você, tentei ver o que você queria me dizer com todo esse seu charme, mesmo quando fica furioso. Eu nunca agradei a você, e nunca sequer me amei por tanto tempo te amar.

 

Quando nós ainda tínhamos alguma espécie de diálogo; quando nos dispúnhamos a nos escutarmos, as coisas eram mais simples. Acontece que as coisas mudam o tempo todo nessa vida. Eu não sei como que, num casamento, você nunca conseguiu me pedir desculpas, mesmo quando sabia que você é quem estava errado. Pedir desculpas não mata! Enobrece a alma. Eu acho lindo pedir desculpas! Acho a forma mais simples de reconhecer que algo que se fez está errado. Desculpa! Eu tenho horror quando você sabe que cometeu um equívoco e não me pede desculpas. Eu tenho horror quando você sabe que está errado e continua assim, emburrado!

 

Mas tudo bem, eu já nem me importo mais com isso. Ao contrário, eu até ignoro. Por que por mais que você queira aparecer para os seus amigos e para os demais, eu sei que, por dentro, você mesmo se destrói. Por não querer enfrentar sua dura e cruel realidade. Acho engraçado como você está sempre querendo agradar aos outros, ao seu público! Tal qual estivesse num teatro! Sabes que acho bonito o ser humano nu? E não só fisicamente! Gosto do ser humano despido até de sua própria alma! Não vou dizer aqui agora que não gosto dessas coisas que todo mundo gosta. Eu gosto de tudo que todo mundo gosta.

 

Eu queria ter você assim: Sempre parado, calado, imóvel, escutando-me novamente. Sem essa sua expressão diabólica, é claro! Irrita-te que eu te diga a verdade? Pois muito bem: Eu não amo mais você! Você foi para mim, como um pequeno parque de diversões. Uma roda gigante! Mas eu enjoei de rodar! E pulei do seu ponto mais alto! Sabe como é engraçado fingir para você? Você sempre acredita! Aliás, você acredita em tudo. Eu finjo que te amo; finjo que te quero; finjo que não te acho absurdo! E você acredita em tudo!

 

Quando a gente deixa de amar uma pessoa, não por causa de outra, mas simplesmente por que deixou de amar, a gente, na verdade, não acredita mais no amor. A gente passa a acreditar que ele não existe. Um casamento é exatamente isso: Acreditar para sempre ou simplesmente desacreditar, ainda que aos poucos. Alguns, como eu, fingem que ainda acreditam para levar o resto dos dias. Mas, como toda grande encenação, isso também há, algum dia, de acabar.

 

É impressionante como antes eu até achava bonito encontrar seus sapatos jogados pela sala... Eu os apanhava com carinho e colocava-os novamente em seu devido lugar. Hoje, os seus sapatos na sala me irritam! Profundamente! Sinto-me agredida em ter que apanhar seus sapatos jogados na sala, sua toalha molhada sobre a cama, sua cueca suja pendurada no banheiro.

 

Eu andei pensando, em algum momento, açoitá-lo. Sim, em açoitá-lo! Até que sangrasse bastante apenas para que me pedisse perdão ao final de cada chicotada. Mas eu preferi que você mesmo se açoitasse. Sim, é bem melhor que você mesmo se açoite e se entregue!

 

Sabe... Quando eu ando pelas ruas, eu procuro olhar as vitrines, observar os carros e apartamentos de luxo e me ver dentro deles. Longe desse aqui. Longe desse ar insuportável. Eu adoro sair na rua. Encontrar pessoas sabe? Se você não estivesse assim tão catatônico, perceberia que há algo diferente em mim. Mas você não percebe. Vai ver isso é coisa de homem pouco romântico! Você sabe como é difícil fazer uma maquilagem diferente, dar um jeito no cabelo, passar um perfume novo e sequer ser notada? Sabe como é difícil isso para uma mulher? Gastar horas diante de um espelho para nada? Você chega em casa com um porco, meu querido: Senta, come, bebe, deita, peida, rola e dorme! Raramente entra, nessa sequência, o “trepa”! Mas, quando entra, logo em seguida, você rola e dorme! Você espera que alguma espécie de amor resista a isso?

 

Ontem eu mexi nas suas coisas e, sem querer, senti na sua blusa um perfume de mulher. E não era o meu, é claro... Jamais usaria um perfume tão forte, tão vagabundo e tão barato. Você não merece que eu te faça isso: Mas eu vou acender seu cigarro e vou preparar uma dose de whisky para você também... O que mais eu posso te fazer? O que mais você quer de mim? Quer que eu tire os seus sapatos? Que lhe entregue sua cerveja? E uns quitutes? Chamar uns amigos? Quem sabe... Deixe-me ver o que mais posso fazer... Ah, é claro! Colocar aquele seu velho disco:

 


DISCO NA VITROLA 


 

Até te daria o prazer de uma dança. Até poderia me despedir de você, se não estivesse tão ocupado com o que estás fazendo... Mas, enfim, creio que seja exatamente esta a vida que você quer. Eu vou tomar um café, mas não sei se devo voltar. Muitas pessoas desaparecem quando vão a alguns lugares... Você já deve ter ouvido aquela velha história: “Foi comprar cigarros e não voltou nunca mais!” Bem, eu só estou indo tomar um café... Não se importe em jogar seus sapatos. Pode jogar! Se eu não estiver aqui para apanhá-los, certamente alguém, algum dia, os apanhará! (pegou a bolsa e abriu a porta) Adeus, seu boêmio desgraçado! Eu espero que você apodreça no seu próprio inferno! Sozinho ou, quem sabe, com outra mulher!

 

E saiu enquanto o disco tocou para ele que permanecia imóvel e com a mesma expressão no olhar.

 

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Oscar Calixto
Enviado por Oscar Calixto em 21/02/2009
Reeditado em 23/05/2023
Código do texto: T1451101
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