Pretenso 'Mini conto' policial



Zé Turíbio tem curso concluído de bombeiro hidráulico. Formou-se no SEBRAE, ainda na década de oitenta. Achava, à época, que poderia ter uma vida digna se trabalhasse com afinco e dedicação. Trabalhou em sua atividade durante pouco tempo, nem seis meses para ser exato. Zé perdeu todos os dedos da mão direita, esmagada entre a válvula de pressão de saída de uma bomba de piscina, e um pedaço do reboco que caiu em razão da trepidação causada pela estafa de todo o sistema hidráulico do clube. Um clube qualquer do Leblon.
 
Aposentou-se por invalidez, mas recebe menos do que o necessário para cuidar de seus sete filhos, duas esposas (uma na favela dos Tabajaras, onde mora, e outra em Madureira, no asfalto), mãe tetraplégica e uma tia com Alzheimer. Fora dois cães a quem alimenta com sobras e farelos.
 
Zé Turíbio é devoto de São Cristóvão, o santo padroeiro dos motoristas, porque seu falecido pai, de quem sente saudades desde que sumiu na poeira há mais de trinta anos, sempre ganhou a vida em boleias de caminhões.
 
Mas nem a medalhinha do santo, que carrega sobre o peito, nem os insistentes pedidos de sua mãe, uma velha consciente apesar da enfermidade, são suficientes para que Zé, do alto de sua responsabilidade familiar, deixe de ganhar a vida no campinho de futebol que existe lá no topo da favela da zona sul.
 
Zé Turíbio é conhecido no morro como ‘Caveirão’, uma forma mais urbana e descolada de se referir a carrasco. Dizem no Tabajaras – com propriedade cartesiana, vocês hão de concordar – que onde falta ordem oficial, não pode falta ação. O ‘Caveirão’, por isso e na verdade, responde apenas por uma parcela - uma curiosa parcela - de participação no intrincado jogo de quebra cabeças que é o Tribunal (assim mesmo, com maiúsculas escritas em letras azuis sobre a abóbada do barraco que funciona como sede, bem ao lado do tal campinho) de Justiça dos Tabajaras: TJT.
 
Tribunal, como etimologicamente faz intuir o nome, onde não faltam tribunas. Locais nos quais advogados pedreiros, marceneiros, sorveteiros, desempregados e biscateiros clamam por justiça na frente da promotoria formada exclusivamente pela liderança efetiva do morro. Na realidade, apenas como registro histórico, o termo ‘liderança efetiva’ é – e soa – como uma catalogação imperfeita do que realmente quer dizer. A promotoria, na verdade, é exercida pelos líderes locais que, não por acaso, são os mesmos que movimentam a maior parte dos recursos da comunidade. Cidadãos com RG e CPF que ganham a vida vendendo pó.
 
O assunto é complexo e as matizes históricas imprescindíveis para o bom entendimento do que envolve toda problemática do vetusto Tribunal. Mas um conto como este definitivamente não almeja discutir toda a problemática de traficantes e consumidores, favelados e criminosos, vítimas e algozes. Contos como este, na verdade, se querem apenas polaroid no meio de tantos megapixels.
 
Feito o intróito e pulado todo o romanceado que conferiria – existissem ainda leitores pacientes – alguns interessantes predicados que humanizariam ainda mais a figura de Zé Turíbio, o fato é que, para um pretenso mini conto policial, basta o ápice arrebatador da sentença e sua execução sumária e fria por parte do executor, ou no caso concreto, o carrasco, o Caveirão.
 
Sendo este o caso, sigamos.
 
A promotoria, com veemência lapidar, pede a sentença. O réu, um jovem de dezesseis anos, havia confessado o roubo de duas adolescentes na praça próxima à entrada da favela. É lei sabida por todos. Roubos a mão armada só são permitidos pra lá do fim do bairro. O advogado de defesa, pai do menor infrator, até que tentou de todas as formas. Prometeu deixar a favela (largaria o emprego por causa disso); prometeu devolver a certeira roubada, comprometeu-se em donativos para a festa junina que se aproximaria.
 
Mas nada, nada mesmo, foi capaz de amolecer o ímpeto soberano do grande julgador, que, pistola em punho, no centro da sala, decidiu.
 
- Aos conformes, Zé.
 
O menino chorava e chorando foi convidado a sentar no chão de terra batida do lado de fora do Tribunal. Mais exatamente bem em cima da linha branca que divide os lados dos times adversários no campinho de terra batida.
 
- Sabe rezar, menino?
- Por favor! Por favor! Eu nunca mais faço isso!
- Sabe rezar, meu fio? É melhor rezar. Dizem que é rezando que chegamos bem chegados na porta do céu. Reze, meu fio. Reze. Eu espero.
- Eu nunca mais faço isso! Nunca mais! Pelo amor de Deus.
- Olha, filho, eu não posso esperar mais. Vou fazer o seguinte. Eu vou começar a rezar e você vai rezando junto, ta? Juro que não vai doer nada. Você não vai nem sentir, garoto. To acostumado. Vai, fio, reze...
- Mas... Pelo amor de Deus! Pelo amo...
- Pai nosso que estás no céu, santificado seja o vosso nome, seja feita a vossa vontade (seja feita a vossa vontade), assim na terra como no céu (assim na terra como no céu), o pão nosso de cada dia nos dai hoje (... nos dai hoje), perdoai as nossas ofensas, assim como perdoamos a quem nos tem ofendido (... ofendido), não deixei cair em tentação, mas livrai-nos de todo o mal (livrai-nos de todo o mal).
 
Puf! Puf! Puf!
 
Os julgamentos seguiram pela tarde afora. Era assim toda primeira segunda-feira do mês. Mas a polaroid - a mesma que fez questão de registrar apenas fragmentos de um romance qualquer – havia decidido. - Pra mim chega!
 
E clicou as serenas feições do ex-bombeiro Zé Turíbio, devoto de São Cristóvão, enquanto passava uma flanela limpa no cano fumegante do calibre 38.