Coisas de família

Ele estava no começo de um jantar com a mãe, as duas irmãs, o irmão mais velho, cunhados, a cunhada, a namorada e alguns colegas do escritório, comemorando a realização de um negócio com uma grande empresa. De repente, quando acabavam de brindar, toca o celular e ele se afasta do grupo para um canto do salão do restaurante, para ouvir melhor o interlocutor, um amigo que fazia um tempão que não se viam.

– Alô meu parceiro – atendeu efusivamente como lhe era peculiar – há quanto tempo!

– Oh meu amigo, meus pêsames, eu ... – disse o outro desconcertado.

– Ah? Por quê? De quê, ta brincando, meu time ta na liderança do campeonato!

– Não, não é isso... é sobre seu pai, eu soube ontem à noite quando o nome dele foi mencionado em um evento ...

– Tas brincando, meu pai ta mais vivo do que nunca ...

– Então ... desculpa, deve ter sido um equívoco, perdoa a brincadeira, acho que está comemorando algo, o barulho... vou desligar ...

– É com a família – explicou – mas, não te incomoda não, isso acontece. Passa em casa ou no escritório. A gente tem que programar algo. Tu andas sumido...

– Ta, eu passo sim, desculpa.

Encerrado o contato telefônico ele ficou pensativo. Já fazia um bom tempo que não falava com o pai.

Pensou, fez as contas, fora depois do Natal quando se lembrara de lhe desejar Feliz Ano Novo, e aquela altura, próximo a Semana Santa, já fazia, portanto, quase quatro meses.

– Puxa, o tempo voa, parece que foi semana passada! – falou consigo mesmo.

Uma sombra de dúvida pairou em sua mente. E, para tirar a coisa a limpo, resolveu ligar para um de seus irmãos do segundo casamento do pai. Revirou a agenda do celular, achou o número e ligou.

– E aí cara, tudo bem? E ...

– Tudo em ordem mano. – respondeu o irmão a quem não via e nem falava há mais de um ano. Tinham se encontrado casualmente em um shopping.

– E o papai ta bem? Ta legal?

– Muitíssimo bem, melhor do que nós mano.

– Hã, por que, como assim, ele ta onde?

– Ta na Glória, no seio de Abraão – se referindo ao Evangelho, – nos esperando...

– Tu ta de brincadeira mano!

– Verdade, meu dileto irmão, ontem fez um mês.

– Para com isso cara...

– Nós, eu, o maninho – como se referia a seu irmão germano e caçula do pai –, e a mãe estamos saindo amanhã cedo para fazer uns arranjos no seu túmulo. Papai quis ser enterrado lá onde nasceu e nos fizemos a sua vontade.

Um nó na garganta dele. Lembrou que o pai dizia aquilo mesmo, descansar na cidadezinha onde nasceu. Fez um esforço, se contendo para não desabar e chorar ali mesmo. Se estivesse em casa teria se jogado na cama.

– Puxa, mano, mas vocês nem nos avisaram!?

– Ele não quis. Ele adoeceu quando viajamos juntos de férias. Levamos a um hospital, onde passou dois dias. Na volta para casa dissemos que íamos ligar pra vocês, mas ele se opôs. Preferia receber uma visita ou um telefonema. E ele aguardava isso ansiosamente, cada dia. Mas vocês – referindo-se aos demais irmãos do primeiro casamento – não apareceram e nem ligaram. Ele melhorou algumas semanas e depois teve a recaída. Mas, foi enfático. Se nenhum de vocês aparecesse ou ligasse, se permanecesse essa ausência, não era para ligar e nem avisá-los quando partisse... Não queria comiseração, queria amor, como ele dizia.

– Ele quis assim?

– Quis meu querido irmão. Então não iríamos incomodar vocês e nem desagradá-lo. Mas, não era mágoa não, era tristeza e conformação. No dia em que ele passou, parece que ele pressentiu. Duas horas antes fizemos uma oração e ele abençoou a todos, falou no nome de cada um de seus filhos, como aliás sempre falava, recordando situações. Pediu para todos nós, um por um, a misericórdia e as bênçãos do Altíssimo!

– Ta, um abraço. Te amo meu irmão, até logo, depois a gente se fala.

– Te amo também mano, um abraço, até.

Ao desligar ele ficou olhando por alguns segundos pro vazio. Pensou no telefonema anterior do amigo que lhe dera os pêsames e sentiu vergonha. Puxa, seu pai morrera há mais de um mês e ele não soubera e ainda não sabia até aquele telefonema, mesmo morando na mesma cidade que o pai? Fazia meses que não o via e o último contato fora o telefonema de fim de ano. E agora o que dizer ao amigo? Ligaria depois e diria que era verdade que seu pai partira, mas era como se nunca tivesse saído, parecia ainda estar presente. Essa era a sensação que passava, era como se ainda estivesse junto com ele, daí não ter aceitado os pêsames.

– Ei, vem pra cá, desliga o telefone! – gritou alguém da mesa, enquanto ele caminhava de volta.

Ao chegar à mesa que fora arrumada com a junção de outras, encontrou seus acompanhantes aos risos, conversando entre si. Seu apetite e sua alegria haviam desaparecido e seu semblante não conseguiu esconder essa fuga e o mal estar que se abatera sobre ele, tanto que uma de suas irmãs perguntou:

– Que foi, bateram teu carro, arrombaram o escritório, limparam tua conta bancária...?

Pior, muitíssimo pior! – ele pensou e quis dizer, mas se conteve, forçando um sorriso e sacudindo negativamente a cabeça, procurando ser natural para não estragar a alegria dos demais. Depois ele diria para os seus. E inventou uma desculpa de que acontecera um probleminha incômodo e particular que impunha sua saída imediata dali. Depois explicaria.

Os demais irmãos o tacharam de estraga-prazer, insistindo que ficasse ali, mas ele disse que os encontraria mais tarde, despedindo-se de todos rapidamente.

Na verdade ele queria sair dali o mais rápido possível. Não tinha estrutura emocional suficiente para permanecer com os demais fingindo que não acontecera nada.

Estava amargurado, nunca mais veria seu pai. Se quisesse saber alguma coisa dos últimos anos, dos últimos meses, dos últimos dias de vida de seu agora saudoso pai, teria que ser através dos irmãos com quem não tivera até ali quase nenhum relacionamento, apesar de se tratarem de manos para agradar o velho. Precisava chegar em casa, passar o restante da noite lembrando do pai, desde a infância, adolescência e dos poucos eventos que se seguiram após a separação de seus pais. Dirigiu-se rapidamente ao estacionamento. Ao chegar ao carro, antes de sair dali, ele abaixou a cabeça sobre o volante de direção do veículo e chorou.

06/3/2009