O pipoqueiro


Denise olhava através da janela.
 
 Poderia olhar pra cima. Enxergaria o recorte da cidade. Uma linda sucessão de montanhas e vales sob um arrebol cor-de-rosa. Veria algumas pipas no alto e talvez até intuísse o porquê delas se entrelaçarem, buscando o fim umas das outras no meio de linhas com cerol e compridas rabiolas coloridas.
 
Mas como fazia todo final de tarde, Denise preferia olhar para baixo. Do terceiro andar do antigo prédio no Lins, via o pipoqueiro armar sua carrocinha bem diante da escola municipal. As crianças – sempre elas – seguiam o mesmo ritual há anos. Em desabalada correria desciam as antigas escadas e corriam até o portão. Alguns pais ali ficavam a esperá-las, mas a maioria da garotada ia mesmo embora sozinha.
 
Era gostoso ver a cidade escurecer dali. O subúrbio tem isso. A algazarra da criançada, o estridente barulho da cigarra anunciando mais uma noite quente, a barulheira provocada pelos escapamentos dos inúmeros ônibus chegando do centro, o comércio lentamente fechando suas portas.
 
Mais um dia, pensava, menos um dia, imaginava.
 
No meio de tudo aquilo, o pipoqueiro sempre a fascinou. Não apenas pelo seu jeito aparentemente doce com as crianças, mas principalmente pela forma como tratava uma delas em especial, uma loirinha, cheia de sardas e espinhas no rosto, e que tinha as pernas tão curtas que mal cabiam no assento da enferrujada cadeira de rodas. Era linda a menina. Denise a chamava de Isabela, e Isabela não aparecia há duas semanas. Formada ela não estava. Salvo engano ainda cursava a terceira série.
 
Durante anos Denise pensou naquilo como se pensa na vida. Deixava vagar o pensamento sobre a bonita relação de ambos. Passeava em hipóteses até que algo mais palpável lhe cobrasse a consciência. A novela, a conta de luz, o telefone a tocar. Sabia que de nada adiantaria interferir naquela realidade e, a bem da verdade, sequer tinha pensado nisso. Gostava mesmo é de contamplar, apenas contemplar. Não havia dúvidas que, de certa forma, aquela cena acalentava a alma e mostrava viabilidade para descaminhos que lhe eram inerentes, seja na forma de preguiça, de tédio, de resignação. Denise não gostava da vida, ou, se gostava, não fazia questão de saber. Mas a singeleza da simples entrega de um pipoqueiro a uma garotinha, fosse com um saco de pipocas cor de rosa, fosse com um belo sorriso e algumas brincadeiras antes de passar a guloseima, representava para si algo que era realmente especial. Fazia sentido, lhe era caro, um momento realmente esperado do dia. Talvez fosse – ela jamais admitiria - o vestígio de alguma esperança que ainda havia latente.
 
De súbito, Denise desceu. De repente, num ato só. Denise desceu com toda a dificuldade que tinha. Desceu e pediu uma pipoca. E puxou assunto. E viu lacrimejarem os olhos do velho pipoqueiro ao ser perguntado sobre a menina. E dele ouviu que ela havia morrido. Suas pernas eram frágeis e seu coração era ainda mais. Antes de morrer – ele sussurrou entre soluços – ela havia deixado uma carta. Que ele tirou do bolso do jaleco, totalmente amassada. Havia apenas um desenho, um rabisco em lápis de cor. Um pipoqueiro marrom e uma menina amarela sobre uma cadeira de rodas com asas. A emoldurá-los, um imenso coração vermelho. Sobre os rabiscos, em tosca caligrafia, uma frase: Isabela ama Seu Jailton.
 
Denise deixou a pipoca, abraçou o velho homem e voltou pra casa. Ao atravessar a rua ignorou olhar para os dois lados, não respondeu o ‘boa noite’ do porteiro e só recobrou a consciência quando viu sua janela aberta.
 
Não a fecharia.
 
Naquela noite, mais agarrada do que nunca às velhas muletas, Denise ficou na janela até que a cidade silenciasse. E se havia contas a pagar, novelas a assistir e telefones a tocar, tanto fazia.
 
Nada traria Isabela.