O dia que o diabo venceu o cordeiro de Deus


Não acontece sempre. Vaidoso, ele certamente prefere mãos mais certeiras, contundentes. Imagino o quão difícil deve ser ao grande escritor lidar com ele a soprar-lhe os ouvidos. Intuo quantas obras clássicas, quantas linhas eternas tiveram sua ajuda. Gostem ou não – a reflexão é factível –, quem vê de outro ângulo sempre acaba descobrindo uma forma interessante de tirar vantagem. Ele vê.
 
Digo isso porque conversar com o diabo não é bem conversar. É ouvir. Pouco entendo de sua personalidade, mas não dá para dizer que não sei quais são seus objetivos. Todo mundo sabe. Pelo jeito com que te assopra a orelha você já imagina mais ou menos aonde ele quer chegar. Se o diabo é interessante, é também previsível. Menos mal que seja assim.
 
Quando ele veio com aquele papo furado eu logo retruquei: você não é sério, né? Ele não respondeu. Eu sei. Não responderia. O diabo não responde, pode perguntar à vontade, ele só fala quando quer. Mesmo assim insisti: não é possível que você não tenha mais nada a fazer do que ficar encrencando com ela.
 
Sei lá eu quantos são os diabos, se apenas um, como o ‘rival’ também unipresente e unisciente, ou se vários, a endiabrar as relações humanas. O que me escolheu como escriba, no entanto, era bem persistente. Queria porque queria provar que ela, a senhora do cafezinho, adventista do sétimo dia, cairia em pecado, ali mesmo na copa, em questão de segundos.
 
Não sei seu nome. Mas sei que anda distribuindo, sempre que se sente confortável para tanto, uma penca de folhetinhos sobre o templo que freqüenta. Na verdade, salvo imperdoável engano, curiosos testemunhos sobre a fé que move montanhas. Não pego os folhetinhos, mas às vezes tomo uma ou outra xícara de café.
 
Naquele dia não estava com vontade. Nem de tomar café, nem de fazer jogo duro com o insistente do diabo. E foi assim, talvez um pouco sorumbático, certamente bastante contrariado, que ganhei o corredor em direção ao cantinho onde ela passa tardes e mais tardes a reverberar a ‘palavra’ do pastor que move lá suas montanhas, enquanto manuseia com alguma desenvoltura cafeteiras e pequenos copinhos de plástico.
 
Isso deve ter irritado o diabo. Consumido sua paciência aos poucos. A ‘palavra’. Só pode ser. Cansou. Vá tomar o seu café! Ta na hora! Chega desse texto chato, monótono. Não é possível que você seja feliz escrevendo essas coisas! Vá! Vá tomar um cafezinho! Aproveita e pega um daqueles biscoitos de maisena! Vá! Rápido!
 
Quando começa assim é melhor ir. Tem uma coisa sobre o diabo sobre a qual não pode recair dúvida. Ele não perde tempo. Sabe bem o que quer e como alcançar. Não me escolheria para comandar uma invasão dos ‘sem-terra’ nem para jogar sal grosso na ração do gato da vizinha. Essas pequenas coisas já têm seus destinatários pré-escolhidos. Parece que o meu tipo, no caderninho vermelho que ele carrega (seria o diabo avesso a modernismos?), se enquadra mesmo no de dar flagrantes sem qualquer impacto maior e sem qualquer poesia correlata. Enfim...
 
Dois metros antes de dobrar o corredor na direção da copa eu vi sair o segurança do nono andar. Grandalhão, mulato, sisudo. Arriscaria dizer que uns dez, talvez doze anos mais jovem do que nossa serva de Deus.
 
Mais dois passos e pronto. Ria o diabo. Gargalhava gargalhadas assustadoras que por pouco não penetraram meus tímpanos. A ‘dona do cafezinho’, mãe de três filhos, adventista do sétimo dia, a mesma que guarda os sábados como bolsos guardam moedas, de olhos fechados e exalando lascívia, com uma mão tocava seus seios, e com a outra esfregava nos lábios o copinho recém jogado no lixo pelo seu colega de trabalho.
 
- Vá! Volte! Café faz mal à saúde!
 
 E continuou a gargalhar.