UM PAPEL BONITO E UM BONITO PAPEL

Atirado ao chão, fiquei de um lado para outro feito barata tonta, ao sabor do vento e dos pés. Até notar que eu despertava uma discreta atenção. Permaneci indo e vindo, entre as pernas apressadas. Chutado, pisado, quando dei por mim, enroscado no nevoeiro de lembranças de uma época, recordando, saudoso, o tempo em que fui tratado feito gente.

Só recordações... Aqueles foram dias de luz. Tudo se deu quando o destino me jogou nas mãos a virtude de realizar uma missão específica, que efetivamente desempenhei. Foi a oportunidade em que adquiri as cores alegres que hoje tenho, ao ser submetido a uma série de beneficiamentos para correção da aparência. Ganhei cara e vida novas e, finalmente, estava pronto a assumir meu trabalho. Fi-lo com alegria.

Enviado para a seção de embalagem, protegi com esmero o produto que me confiaram guardar. Lembro-me ter saído da fábrica abraçado a ELA até o instante final, em que lamentavelmente nos separaram. Guardo os momentos bons que juntos tivemos, quando passeamos pelos armazéns e supermercados, sempre abraçadinhos, chamando a atenção de todos que nos viam; alguns não resistiam e até nos tocavam. Ah, aqueles dias!

Mas, em certa data, um casal nos inquiriu a ir consigo. Não oferecemos resistência. Fomos, sem sonhar, ou sem querer aceitar que seria o fim, que em algum momento, breve, mãos ávidas nos apartariam.

Após uma porção de passos sem destino certo, o casal sentou-se em um banco, numa praça. Abraços, beijos, amassos e... E a hora chegou. À força, o jovem desprendeu-A de meus braços, deixando-A nua, completamente desprotegida. Tremi, porque, com a convivência, havia-me esquecido de até quando devia dispensá-LA minha proteção, e, no momento, não atinava no que podia acontecê-LA, que mal LHE sucederia.

Qual não foi o meu espanto quando vi aquela mão safada, que A detinha, dirigir-se à boca da moça, e esta, lentamente, separando os lábios sensuais e famintos, deixar cair suave a língua sobre o lábio inferior, até que os dedos do jovem depusessem-NA ali. Vê-LA ser tragada foram os instantes mais dolorosos da separação. Desejei invadir aquele buraco nojento em SEU resgate, mas não passou do desejo; já não me restava o que fazer, empalideci, e passei a temer por mim também.

Quanto ao meu destino, só agora reconheço ter sido menos louvável que o dELA – isto porque às vezes discutíamos sobre quem teria maior importância em nossa trajetória de vida. Reconheço, enfim, que minha significância atrelava-se à dA minha protegida e que mais nada sou sem SUA presença e que, portanto, ELA tinha muito mais valor do que eu. Tanto que A puseram na boca e a mim me jogaram no chão.

E, no chão, ao sabor do vento e dos pés, feito barata tonta, para um lado e para outro, inacreditavelmente, notei tímida atenção desviada ao meu corpo, o que me aguçou a curiosidade.

Percebi uns poucos olhares a me perseguir, mas não cheguei logo a captar-lhes o espírito. Então comecei a criar suposições: Porque me olham? Seria por pena? Uns botavam-me uma cara feia! Olhavam-me e entreolhavam-se, cruzavam-se e em sentidos opostos desapareciam na multidão. Passei a dar mais importância a esses olhares, a estudá-los. Assim, notei que algumas pessoas murmuravam. Quis entender... Percebi o que havia: um incômodo por minha presença ali. Quem diria! Eu preocupava! Eu incomodava, oferecia medo; por quê? E, principalmente, como?

Os olhares, os murmúrios deram a revelar o misterioso sentimento dessas pessoas: o que pretendiam era me dar um novo rumo, um local adequado, onde eu tomasse meu predestinado curso de vida, mas temiam o que as outras –– porque maioria –– pudessem pensar; daí o incômodo. E mantive o pé em local impróprio, estorvando e sendo pisado.

Aquelas pessoas, como temessem ser taxadas de subservientes ou boazinhas ou bajuladoras ou santas ou garis, evitavam a prática do ato que supunham positivo, posto que poderiam vir a ser motivo de chacota para outros passantes, então, negavam fazer o que o coração lhes ordenava. Condenavam a atitude dos que me jogaram em praça pública, mas receavam a censura daqueles que são indiferentes a minha presença neste ou naquele local. A situação, a despeito da pobreza do meu juízo, caracteriza o reinado do “fazer errado” sobre o “fazer certo”; o medo do fazer certo. Fazer o certo constrange, parece ameaçador ou lisonjeiro, é babaquice; o digno é fazer errado. Façamos tudo ao contrário do que recomendam os bons costumes e o melhor senso, e teremos o reconhecimento da maioria. Eis o quadro que se me afigurou predominante em meu país, a julgar por esse simples exemplo. Mas esse parecer só se materializou quando vi descortinado o mistério dos olhares que me lançavam, e tal só pude desvendar por completo quando alguém, em louvável atitude de coragem, envolveu com a mão e atirou neste recipiente para lixo o inútil papel de bala que vos fala.

Antonio Leal
Enviado por Antonio Leal em 18/03/2009
Reeditado em 29/03/2009
Código do texto: T1493836
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.