DESTINO

DESTINO

O trinado dos pássaros era o mais sonoro dos que já se tinha ouvido naquela região. O farfalhar das folhas, no galho das árvores, embaladas pelo vento, espalhava uma canção tão melodiosa que fazia os pássaros se calarem, tamanha a harmonia. O murmurar das águas cristalinas do riacho traduzia a mais doce paz! E o silêncio que ali reinava levava os mortais a uma doce e profunda reflexão. Era pura magia e encantamento aquele lugar! E, isso, sem falar das cachoeiras cujo som de suas águas, despencando, se misturava com a alegria das crianças e até mesmo dos adultos que ali iam se refrescar em banhos deliciosos. E o canto dos galos a acordar os que sabiam ser preciso ir cedo para a labuta, bem como os que queriam usufruir, das bênçãos da mãe natureza! Que dizer... daquelas que, numa grande algazarra anunciavam com mais um e outro ovo, o cumprimento de sua missão?... do balido das ovelhas, do rítmico “cri-cri”, “cri-cri” dos grilos e tantas outras maravilhas que, vale a pena repetir, transformava aquele lugar em magia e encantamento?

Foi num lugar assim, que nasceu aquele menino, mais um dentre os onze irmãos. Seus pais, felicíssimos, (sempre que nascia um filho, a alegria era redobrada) mandaram anunciar o fato pelo toque de um berrante, do melhor boiadeiro da fazenda. Anúncio que também era um convite para que todos viessem festejar tal acontecimento. Cedo da noite começavam a chegar os vizinhos, amigos, e o aroma vindo da “cozinha grande” da fazenda denunciava que o tempero das velhas “tias” era, realmente, convidativo e irrecusável. Quando todos os convidados já se faziam presentes, o menino foi apresentado. Aplauso geral! E a velha tia Chica, uma preta descendente de escravos e que por todos, era muito querida, aproximou-se e disse: “Oh Deus! Que maravia esse um novo afiado (todos os que ali nasciam ali o eram)! Vai sê um defensor da pobreza e de todos qui agirem com as mais boa intenção. Todos vai lhi querer bem e vejo uma claridade diferente no final de sua existência. O fogo consumirá o seu corpo. Mas não fique triste meus cumpadi e amigo. Alegria! Alegria! A bondade dele fará com qui todos alembre dele!” (a mãe não quebrava o resguardo, com tanta algazarra de euforia, pois já estava acostumada e era ela mesma que fazia questão que assim fosse). “Eta tempo bão!” Era assim que sempre dizia o Bastião (Bastião, mesmo), quando a lembrança fazia seu olhar mais brilhante pelas lágrimas que, disfarçadamente, tentava esconder.

O tempo foi passando. Como gostava de tomar banho na represa, aquele menino, peralta como ele só! A mãe se preocupava e dizia para o pai do receio de seu filho se afogar naquelas águas tão fundas. – “Besteira mulher. Na água esse menino não morrerá. Não ouviu o que a velha Chica falou? Deixa o menino brincar, nadando e mergulhando na represa. Tá crescendo forte e corado que só ele! Depois, ele tem uma missão a cumprir ao lado dos pobres, trazendo alívio aos corações das mães e de todos aqueles que, em desespero, haverão de procurá-lo”.

De fato, cresceu, estudou, trabalhou em vários hospitais e sempre trazendo uma palavra de conforto e ajuda aos que a ele recorriam. E quando tinha uma folga, ia em busca de algum lugar onde tivesse águas profundas e em abundância para dar as suas “braçadas”, recordando seus tempos de infância. Procurava infundir na esposa e filhos a confiança no seu destino, na previsão da velha Chica. Certa feita, já casado e com uma filhinha, estava a apreciar a chegada das águas das barragens que haviam arrebentado em seu percurso e faziam sangrar determinada lagoa, quando, de súbito, sente um grande impacto. Era a água que mais forte alcançara-o, levando o sapato do seu pé esquerdo. Mas... foi só um susto, que logo passou. Aquilo era água e não fogo.

Destemido senhor! Só uma coisa não fazia por dinheiro algum, nem que tivesse a maior pressa e a maior urgência em resolver alguns de seus negócios: viajar de avião. Nem mesmo quando foi inaugurada a linha aérea como parte dos festejos do aniversário da cidade que tanto amava. Água, sim! Fogo, só mesmo no final de sua jornada que, aliás, esperava não fosse tão cedo.

E num fatídico final de semana, vai de carro próprio à sua fazenda em outro município. Com vizinhos, colegas, amigos, reunidos em uma outra fazenda, ele passa o tempo descontraidamente. Ali deixando o carro, retorna de lancha. Alegria pura! Sempre se recordava da tia Chica e, por isso mesmo, ia tranqüilo. A embarcação gira rapidamente e dois caem na água. Nosso amigo sabia nadar, e foi acudido o outro que nunca havia entrado n’água. Preocupou-se, nosso amigo? Nem um pouco! Estava na água e não na cabine de um avião. Só que...

Uma única vez tia Chica errara em suas previsões.

Triste ironia! Naquela tarde, a cidade inteira, consternada, vê chegar o corpo daquele representante. Vaticinado a morrer queimado, perde a vida em meio às águas com as quais tanto se familiarizava, e de maneira tão banal!

Que sabemos, nós, do destino?

-delia-

(Qualquer semelhança com a realidade não será mera coincidência, pois... baseado em fatos reais. “Agüenta coração!”).

Águia Solitária
Enviado por Águia Solitária em 28/03/2009
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