Quatro cenas e meia

 
Apontei o local solicitado com a cabeça. Duas vezes. Como se estivesse querendo tirar água dos ouvidos. Olhos abertos, a tudo atentos. Era o que tinha a fazer.
 
Primeira cena: uma cozinha. Não muito grande. Também não era mínima. Lembro de uma enorme geladeira bege, azulejos limpos e bastante gente circulando pela casa. Provavelmente era uma festa. Fui descansar por lá. Tenho a impressão que acompanhava algum amigo do meu pai, mas não estou certo quanto a isso. A empregada era gorda e negra. Usava uma espécie de proteção na cabeça. Os cabelos encrespados não poderiam atingir a comida. Lembrei-me que estávamos em Arraial do Cabo. Um pouco depois de Cabo Frio. Lindas praias, mas mesmo assim a casa tinha uma enorme piscina. Pessoas andavam de um lado ao outro ao som de muita música. Lembro de garçons e de sentir vontade de ir embora. A cozinheira me falava alguma coisa sobre os peixes que fritava. Chamavam-se ‘trilha’. Pequenos peixes avermelhados. Segundo ela só se alimentavam de camarão. Achei gozado um peixe que só se alimenta de camarão.
 
Segunda cena: levava uma velha parati ao borracheiro em frente ao cemitério São João Batista, em Botafogo. Um carro branco, combalido pelo tempo. Eu sabia que aquele pneu estava furado. Não sei bem o porquê eu mantinha a fé de que o enchendo com freqüência o furo desapareceria. Havia feito isso algumas vezes nas semanas anteriores. Chovia bastante e um borracheiro preguiçoso me atendeu dizendo de cara que o serviço demoraria. Não tinha alternativas. Ao menos alternativas que me impulsionassem para outro lugar. Éramos dois preguiçosos a olhar um carro velho num dia de chuva torrencial.
 
Terceira cena: deixava o Maracanã. Havíamos perdido o Fla x Flu. Abrimos com um gol do Delei, mas sofremos a virada nos minutos finais. Um gol do Zico e outro do Leandro. Esperava para atravessar a rua em direção ao carro do meu pai que estava estacionado na UERJ. Pessoas passavam felizes ao meu lado. O último gol tinha sido realmente bonito, embora, de onde estivesse, tenha dado a impressão que o goleiro falhara. Foi o gol do Leandro. Estava de mãos dadas ao meu pai. Pensei em perguntar-lhe o porquê dele achar o Leandro o melhor jogador que ele tinha visto. Isso ele só me disse uma única vez. Era estranho. Ele sempre foi Fluminense. Tinha visto grandes jogadores. Não queria polemizar. Não aquela tarde. Comi pipocas salgadas antes de entrar na velha marajó. O caminho de volta parecia eterno. Principalmente com o túnel Rebouças engarrafado.
 
Quarta cena: segurava uma vela. Fiquei ereto por vários minutos esperando ser chamado. Tinha 11 anos, mas ainda assim me sentia ridículo em roupas completamente brancas. O padre anunciou o meu nome e fui me confessar. Não lembro o que ele me perguntou, havia uma espécie de treliça a nos separar. De todo modo, falei exatamente o que havia ensaiado. Disse que às vezes era grosseiro com meus irmãos e que fingia estar doente para não ir à aula. Não precisou que eu dissesse que botava o termômetro na lâmpada. A fila estava grande. Todos de branco, como eu. A vela só poderia ser acesa depois que eu me purificasse. O padre pediu para que eu rezasse duas ‘Aves Marias’ e dois ‘Pai Nossos’. Achei uma boa maneira, uma maneira engenhosa, de resolver as coisas.
 
Estava começando a pensar numa quinta cena, mas fui interrompido. Era alguma coisa relacionada a um ‘pega’ que presenciei na estrada Grajaú-Jacarepaguá. Dois carros vermelhos. Um rodou e bateu na mureta. Eu passava pela pista do outro lado na carona de um amigo.
 
Ele aproximou-se com minha mochila cheia. Vi quando passaram com a televisão nova. E com algumas outras coisas de menos valor. Levei um soco no queixo. Um gancho, ou algo assim. Apontou o revólver para minha cabeça. Disse que era pouco. Insistiu sobre o cofre. Não havia cofre. Nem jóias. Só apólices de seguro e carnês com algumas contas. Meu nariz sangrava em razão do segundo soco. Acho que tecnicamente foi um direto de esquerda. Ele batia com as duas. Falou que eu não valia nada. Que homens assim não mereciam viver. Eu nada disse. A poça de sangue sob meu corpo já atingia o vão da porta. Pensei em desmaiar, ma resisti.
 
Eles gritavam uns com os outros. Pensei em pedir calma. Quanto mais calma melhor. Novamente fiquei quieto. Havia lido em ‘Feliz ano novo’ que um cara metido a esperto, desses yuppies que são assaltados em suas casas, tentou negociar com os assaltantes e acabou grudado na parede por um tiro de espingarda. Havia esquecido como rezar. O que ‘dialogava’ comigo colocou o cano da arma dentro da minha boca. Pediu-me informações sobre o cofre. Não sabia mais como falar a verdade. Combinaram de descer pela entrada de serviço. Para mim, tanto fazia. Não sei a razão pela qual gritavam esquizofrenicamente. A situação estava seguramente sob controle daqueles caras. Talvez um desconfiasse do outro, não sei. O negro indagou-me se eu sabia cantar. Arregalei os olhos em sinal de espanto com a pergunta. Devia apenas ter respondido. Que sim ou que não. Levei uma coronhada que me rachou a cabeça e me fez sentir muito frio. O que tinha cara de índio tirou a fita adesiva que haviam posto em minha boca.
 
Tu sabe cantar ou não sabe? Estava tonto, mas falei que sabia. Perguntei o que eles queriam que eu cantasse. Levei um tapa de mão fechada na altura da orelha esquerda. Não vi quem deu. Pediram-me que eu cantasse uma música que eu nunca tinha ouvido. Acho que era uma espécie de funk. Eu não sabia cantá-la. Eles insistiram e eu cantava após o negro parar de cantar. Apenas repetia. Não lembro da letra, mas eles se divertiam. Um deles, acho que o que tinha cara de ser o líder do bando, chegou a dançar de forma esquisita. Quando parei de cantar, o índio me acertou um chute com muita força nas costelas. Caí golfando uma quantidade enorme de sangue. Meu instinto de sobrevivência dava ares de esgotamento.
 
O negro puxou meus cabelos e fez com que eu olhasse no fundo de seus olhos. Olhos amarelados. Se eu sabia contar? Fiz que sim com a cabeça. Uma única vez, de cima para baixo. Pediu-me para que contasse até vinte. Se chegasse ao final eu sobreviveria. Tive vontade de roubar na contagem. Precisava chegar ao vinte. Sentia-me um ser inanimado, uma espécie de boneco. Cheguei no onze com o cano da arma em minha têmpora. Doze, treze... O negro começou a gargalhar, mas mantive a calma, concentrado na seqüência de números. Não queria roubá-lo. Dezenove. Vinte.
 
Deu-me um pontapé que me deixou desacordado. Um chute forte no queixo. Quando abri os olhos demorei a me convencer de que ainda estava controlando meus movimentos. Não senti raiva nem medo. Nem dor eu senti. Estava desfigurado e renascido.