Momentos - A mala (Parte IV)

Mais um dia de discussões. Aquele domingo feliz já era um passado inalcançável, mas não distante. Fazia muito calor, porém mesmo assim o garoto relutava em se levantar. Afinal, naquele sábado não iriam à igreja. Para ele ir à igreja não era um de seus programas preferidos. Isso porque não acreditava em muita coisa que diziam. Sábado era o dia de todos lá colocarem as fofocas em dia, exibir sua melhor roupa e mostrar, ou pelo menos tentar, o quanto eram fiéis a Deus e perfeitos. Claro que não eram.

Contudo o garoto fingia muito bem um certo interesse pela religião. Conhecia a Bíblia como nenhum colega seu, e assim todos lá na igreja acreditavam que ele seria um grande pastor. Ele mesmo afirmava isso, mas era claro que estava totalmente fora de cogitação, pois antes de tudo tinha planos maiores do que influenciar pessoas para algo que não acreditasse.

Enfim, o menino levantou-se. Quem conseguiria dormir com toda aquela discussão? Indo para a sala, deparou-se com uma mala feita. Seu pai estava saindo de casa. O rapaz sentiu um grande alívio, e com isso pensou ser o pior filho do mundo. Contudo sabia que assim acabariam vários problemas. Pena ele estar enganado.

Tentou tranqüilamente tomar seu café da manhã, até porque pensava que nada daquilo deveria interferir na sua vida, mesmo sabendo que isso era impossível. Bebeu cevada e comeu pão de centeio com mel. Regras de sua mãe, que depois de certas palestras proibiu que os filhos comessem alimentos "não naturais". Ainda se acostumaria com as inconstâncias dela.

Mesmo à mesa, conseguiu descobrir que seu pai não iria para muito longe. Aliás, perto demais: a casa vizinha, do seu tio. Pensava se isso daria certo. De que adiantava pensar? Já estava feito. O garoto agradecia por sua irmã estar na casa da vizinha Telma, e não precisar passar por tudo isso.

O pai veio à mesa, e deu-lhe um beijo. Prometeu que, se fosse morar com ele, teria muitas coisas, e uma vida muito melhor. Mas o menino tinha medo, e infelizmente (ou felizmente) era muito influenciado pela mãe. Ele segurou o choro, e percebeu que estava cada vez mais insensível à vida. Tudo ruía ao seu lado, e começava a se acostumar a isso.

A mãe chorava. Ele não sabia se era de alívio, tristeza, felicidade. Mas chorava. Enquanto seu pai cruzava o pequeno portão, o som de uma triste gaita soava na cabeça do garoto. A melodia era a mesma de seu ursinho de pelúcia. O rapaz muitas vezes ia até a casa de brinquedos e apertava exaustivamente a pata do urso para ouvir a canção e chorar. Era estranho, mas sentia prazer em ouvir a música melancólica várias vezes. Talvez fosse porque se sentia confortado com isso.

Foi talvez daí que o garoto começou a apreciar as músicas mais depressivas. E a partir dessa fase que sua vida se tornaria assim. Não que ele quisesse, mas percebia que algo de diferente acontecia consigo, e que compreenderia muito mais tarde. A partida de seu pai seria só o começo de muitas mudanças.