Este livro pertence aos homens mais raros


Novamente um ‘não-personagem’. Isso não é bom. Definitivamente não é bom. Eles, os ‘não-personagens’, induzem-nos a crer que toda prosa é possível, que todo conto pode ter um final. Lamento-me demais. Esses últimos dias têm sido terríveis. Árduos dias de escritas que são verdadeiros nós. Novelos de ‘não-personagens’ que insistem em nos convencer que há trama mesmo na ausência de vida. Coitado de mim. Moro no umbral dos escritores. Abaixo dos analfabetos e longe de qualquer resquício de literatura. Não, não acho que seja exatamente o caso do Paulo Coelho. ‘Não-personagens’ adoram fazer perguntas capciosas. Há de se respondê-las com cautela.
 
Admito peremptoriamente: sou um ‘não-escritor’. Um gênio na arte de dar ouvidos a ‘não-personagens’. Mergulho vertiginosamente em direção ao fundo do poço onde naufragam todas as letras. Sinto-me um médium de terreiro suburbano, ou algo assim. Cansei-me de Pretos Velhos, Zé Pilintras e Pombas Giras. Quero sangue novo. Não! Vamos, coragem! Quero um personagem! Eu consigo. Onde coloquei meus livros de auto-ajuda? Um. Unzinho que seja. Policarpo Quaresma, Espinosa, Leonardo Pataca. Está bem, um passo de cada vez. Mas, ainda assim, acho que já mereço alguém que seja interessante. Formei-me em bons colégios. Li “Crime e castigo”. No original. Visitei o epitáfio de Bukowski. Don´t try. Hmmm... Será que foi isso?
 
Divido minha angústia com vocês - queridos ‘não-leitores’ - porque nessa madrugada um desses zombeteiros me procurou. Veio sem cerimônia. Ao contrário. Falava empolado, cheio de anglicismos. Segurava o cetro das certezas. Apresentou-me um livro. “Este livro pertence aos homens mais raros. Talvez nenhum deles sequer esteja vivo.” Impressionei-me. Caramba!Deve ser bom!Refeito e desconfiado,comecei a folheá-lo. Apenas páginas em branco, todas elas. Uma após a outra. E antes que eu o respondesse à altura do deboche, ele asseverou. “É exatamente isso o que procuras. O único livro que te possibilitará criar livremente. Sou como você – disse franzindo a testa –, não suporto contos com finais cartesianos. Serei mais do que um personagem, serei o fio condutor que levará sua obra às prateleiras mais cobiçadas do país”. Segunda-feira de madrugada. Tanta vida a ser retratada nas ruas desta cidade e eu recebendo a visita de mais um empulhador. “Meu amigo, muito obrigado, mas não estou interessado”. Daquela vez, contudo, antes que o mandasse de volta à companhia de tantos ‘não-personagens’ que insistem em protagonizar meus textos, recebi de suas mãos um bem acabado cartão de visitas: João Romão Guanaes. Abaixo, em letras delicadamente desenhadas: branding strategy insider.
 
Cocei o queixo, mordi os lábios e puxei a cadeira com a resignação dos que se reconhecem sendo enganados.
 
- É exatamente disso que preciso, seja lá o que isso signifique. Sente-se, João. Aceita um café?