Flores no chão

Depois da incrível tempestade de ontem à noite, sobramos eu e ela. Olhei-a piedosamente. Nada falei. Não havia o quê. Serviu-me um café. Estava exausta, extenuada. Ainda assim perguntei pelo adoçante. Você viu o adoçante? Diante das circunstâncias, a pergunta era cretina. Mesmo assim apontou-me algo em cima da estante da cozinha. Tomei puro.
 
Infinitas palavras chegavam à garganta e morriam antes de nascer. Nenhuma era adequada. Bem melhor seria o mundo sem elas. As palavras. Peguei outro café. De novo puro. Fiquei ali, sentado sobre os azulejos da cozinha por horas a fio. Não senti fome, nem sede, nem sono. Meu cérebro infelizmente continuava a funcionar. Mas parecia cada vez mais um órgão isolado do resto do corpo. Uma espiral de reminiscências me incomodava. Coisas aparentemente desconexas e certamente indesejadas. Desconfio de que a medição da inteligência humana passa obrigatoriamente pela capacidade de cada cérebro processar convenientemente as informações corretas no momento devido. Senti-me um idiota pensando em discussões de trabalho, variações cambiais e despoluição da baía de Guanabara. Isso deve ser burrice.
 
Ela estava ainda mais inconsolável. Carregava no pulso as marcas da dor. Tinha as mãos roxas. Seria melhor procurar um médico o quanto antes. No rosto, uma enorme cicatriz que a compressa de gelo seria incapaz de curar. Nada seria capaz de fazê-lo.
 
Apresentou-se como entregador de flores. Nenhuma mulher resiste a isso. Carregava um buquê de gérberas vermelhas. Tinha o ódio estampado em seu rosto. Isso eu notei assim que o vi, já com ela em seus braços e com o cano preto da arma apontado pra mim. Comia pipocas assistindo a um filme qualquer. No início tive medo de morrer. Logo teria medo de que isso não ocorresse. A dor cortava minha pele e fazia meu coração explodir dentro do peito. Ele a tinha enquanto sorria. Chamava-a de branquinha. Suas feições eram pálidas, mas corajosas. Resistia o que podia. Não podia nada. Olhava-me como que pedindo desculpas. Minhas lágrimas estavam secas. Todo o ódio do mundo estava ali. No corpo dele e no meu corpo. Toda a dor, no entanto, era dela, inclusive a minha. Apanhava. Sentia aquele cotovelo chegar às raias de rasgar sua pele. A cada entrada, o terror da pressão em seu ventre. Seus olhos queriam pular em meu colo. Eram olhos tristes. Tristes como nunca imaginei vê-los.
 
Quando tudo pareceu acabado, colocou de novo o cano na minha cabeça. Àquele instante, pedi muito para que não atirasse. Em surdina, pedi. Cheguei a rezar, muito embora minha pouca fé tivesse sido sepultada ali, minutos antes. Levou algumas coisas, mas deixou as gérberas no chão. Antes de sair, ameaçou-me novamente. Se olhar de novo eu te mato. Não precisava. Seu rosto jamais sairá de dentro de mim.
 
As flores começaram a murchar.
 
Não meu ódio. Será ele o combustível que me manterá vivo e a única força capaz de fazer com que eu levante desse chão frio.