Sujeito Oculto

Sentia-se, por vezes, tão neutro entre os outros que chegava a questionar a percepção das pessoas. Chegou a acreditar que o endurecimento causados pela cidade grande mais a rotina infernal, talvez o trânsito, tudo isto tornava todo mundo alheio a tudo. Assim se consolava, porém continua invisível.

Não o suficiente para não ser atropelado, claro, como daquele vez no natal, por um ciclista apressado e em pleno passeio. Sim, seu pé doeu muito. O ciclista deve ter passado a roda bem em cima daquele seu calo que não sara. Doeu muito, mas ninguém parou. O rapaz da bicicleta sequer olhou para traz.

Talvez não fosse sua culpa, pensava. Mas no final o que importa? As pessoas da cidade grande são assim mesmo, endurecidas, passageiras, alheias ao redor. E talvez seja melhor, pensava. Talvez assim não se sentissem aliadas à desgraça dos outros.

Por vezes divagava de quem era a fome que sentia. Seria sua? Seria de seus pais? Sim, porque fome e culpa são a mesma coisa: todas doem e são saciadas apenas por breves momentos. Quando almoçamos, não pensamos que precisaremos do jantar. Quando se é perdoado, ainda temos a capacidade e a necessidade de errar. E de que seria a culpa? Talvez de alguém de barriga cheia... mas tudo não passava de divagações improdutivas, sem contexto aparente. Por fim, tudo era um motivo para continuar indivisível na sociedade. Um João Ninguém deve manter seu status e permanecer distante dos olhos das pessoas, embora quase sempre elas perceberiam seu cheiro, pensava.

Talvez até tivesse uma vida, nalgum dia. Mas ficou numa rua ou outra, destas tantas que anda sem perceber as pessoas. Sentia-se, por vezes, que os passantes se tornavam neutros. Era estranho, muito estranho. Jamais quis esquecer como sai da vida de sua casa. Aquele tormento, aquela angustia de se perder algo intangível, necessário, vital.

Decidiu perder a família, mas ela já o tinha perdido há muito tempo. Alguns, menos sensatos, diziam que o Presidente acabaria levando ele para o inferno. De fato, o seu conhaque preferido não o levou para o inferno. Porém quando não sobrou mais nada e o gostou do álcool lhe tornou escasso, era preciso uma dosa para tomar coragem.

Ele estava sóbrio quando pediu esmola pela primeira vez.

Não sentiu dor alguma por não receber esmola.

Mas quis morrer quando uma pequena garota lhe deu algumas moedas.

Sentiu-se vivo quando tomou uma dose ali naquele bar esquecido. O homem que o atendeu sequer olhou seu rosto sujo, apenas contou as moedas e serviu uma dose, sem uma gota de choro.

Por vezes, sentado na noite ou na chuva, se perguntava se era possível que a rua o engolisse. Chegava ao exagero de imaginar uma boca de lobo cheia de dentes metalizados, mordendo aquele seu calo e o triturando, pouco a pouco, assim como imaginava que o conhaque fazia com ele. Mas nada acontecia, sequer pesadelos possuía, pois quase nunca se podia dormir.

Uma imagem fútil se pendurava em sua orelha qual brinco vergonhoso: sua antiga esposa parecia lhe vigiar ao longe, como que a esperar seu padecimento. Ignorante, pensava, eu já morri faz tempo, gritava.

E nem com estes gritos desnecessário pela rua afora, alguém lhe dava atenção.

Era neutro, parte da rua e do álcool que consumia. Parte de lugar algum, parente das pedras, filho dos toldos, senhor de ninguém.

Mas no final o que importa? Se quisesse piedade, leiloaria suas histórias sem nexo feito um louco, como há tantos, e logo algum exotérico ou religioso apareceria. Mas ainda assim ele não seria alguém, mas apenas um número na noite na fila da sopa e dos sorrisos desenhados nos cursos de bom atendimento.

Olhar nos olhos? Ele bem que queria ver se alguém tinha coragem de lhe olhar nos olhos. Sim, quem seria humano o suficiente para tal façanha.

Olhar-lhe nos olhos.

Quem teria tutano para isto? Para lhe olhar nos olhas, profundamente ou quiça na membrana sem lágrima, deveria se abaixar muito, pois ele não mais sabia o que era ter a cabeça erguida, ou os olhos no poente.

Amargo
Enviado por Amargo em 10/04/2009
Código do texto: T1531943
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