Da fé

Ele já foi.
 
O rumor, com ares de boato, foi ganhando vilas e casas. Rumor aquiescente, diferente de outros tipos de rumor. Cada chefe de família e cada empregada, cada velho ou criança, se não sabiam, em breve haveriam de saber. A notícia, afinal, parecia ser levada pelo vento: Ele já foi, ele já foi. Parece que foi pra longe. Lá pro norte. Era apenas isso o que se ouvia naquele sábado. Domingo cedo, logo no primeiro horário, ele já teria um sucessor. Parece que esse novo que vem aí é diferente. Dizem que vem lá do Paraná. Seguiam-se pensamentos inconfessáveis e interjeções desconexas. Frases curtas e apressadas eivadas de insegurança.
 
Ricardo, o pai da menina, quedava-se confuso. Da velha poltrona, admirava o recorte das belas encostas que circundavam a cidade. Logo comigo, pensava, logo com ela, lamentava-se. Estaria lá, contudo. É bem verdade que chorar de nada adiantaria. Chora-se mesmo apenas por desabafo. Eles têm razão. É importante estar lá. Exemplo. Todos falaram. Preciso ser exemplo. Fortaleza. Não é fácil, mas é preciso. Deus, em sua misericórdia, há de nos dar amparo. A menina supera, ainda é nova. Todos eles estiveram aqui. Disso não posso reclamar. Depois que o boato correu pela cidade, recebi todo o apoio. Foram muito dignos comigo. Poderiam não ter sido. Quem sou eu, afinal?
 
Vestiu uma velha calça de linho bege e uma camisa vermelha de botões. Escolheu o mais engraxado entre os dois sapatos e ganhou a rua. Dobrou três esquinas e, enfim, sem cansaço, sem pressa, sem nada, chegou. Todos estavam a lhe esperar e, como esperado, ninguém lhe saudou. Ele sabia, no entanto, que era preciso estar ali. Era duro e preciso. Duro e preciso, analisava. Encorajou-se e tomou assento no lugar de sempre. Acompanhava-o, como de certo ocorria todo domingo, sua mulher e filha mais velha. Ninguém perguntou da menina. Ele assim já imaginava.
 
Quando o jovem com cabelos bem alinhados começou a falar com um sotaque estranho, todos sentaram em sinal de respeito. Ricardo ouvia cada palavra com esperança. Esperança havia lhe sobrado. Não apenas, mas também. Também, naquele contexto, servia de alento, já era alguma coisa. Em alguns momentos, todos, inclusive ele, repetiam frases curtas e expressivas. De alguma forma estava liberto. Queria de fato que assim o fosse. Também queria explicações, sim, por que não tê-las? Mas talvez, ali, àquele momento, não quisesse mais vingança. Tudo se assenta naqueles que crêem. Um deles havia deixado um pequeno livreto com esses dizeres.
 
Começaram todos a cantar. Com a má afinação que o caracterizava, Ricardo procurou acompanhar. Cantou essa e mais duas músicas, e, como de resto, procurou atender o que haviam lhe pedido. Com serenidade e resignação. Sua confusão começava, enfim, a arrefecer.
 
No caminho de casa, no entanto, enquanto tentava controlar os inevitáveis pensamentos paradoxais, Ricardo lembrou-se da menina e das marcas da violência estampadas em suas virilhas. Entregou-se novamente às palavras que soavam como sinos há dias e mais dias. Foi ele, papai. Foi ele... E de novo, enquanto o sangue quente lhe ameaçava os sentidos, só encontrou remédio na sabedoria dos que lhe garantiram: É preciso resistir aos impulsos. E isso, meu filho, só se faz com resignação e serenidade. E fé. Muita fé.
 
Mais um dia se passaria sem que ele entendesse o porquê do sol se pôr por detrás daquelas encostas.