Despejo
Talvez tivesse perdido a noção de sua origem, talvez isto não importasse. Afinal, em seu mundo era um deus. Em seu mundo. Seu.
Era seu instituto, sua pedra. Jamais chegou a ponderar sobre a complexidade da posse, mas aquele era o seu mundo. Sem contestação e sem presságios. Apenas era o guerreiro, era a santa. A esperança e a espera.
Sua pele enrugada, sua boca sem dentes, nada disto o ternava menos ser. Em seu universo podia voar, sonhar, fazer o que quisesse. Não havia com o que se importar, e mesmo que houvesse, talvez não se importaria.
É estranho, às vezes, mas o ser passa a fazer parte de seu lar. Como que se as paredes se perdessem num horizonte longínquo e sem cercas. Os limites de sua casa eram a extensão de seus braços, de seus sentidos.
Talvez fosse solitário, mas quem escolhe as companhias? Talvez fizesse parte da razão a escolha natural de uma sociedade. Se sim, escolher não ser a sociedade se tornaria um direito pleno.
Mas nada disto importava. Seu cercado era bem conhecido. Girava por ele a admirar o que os sentidos lhe ofereciam.
Não enxergava.
Porém não estava escuro. Era diferente. O escuro á algo que pode ser definido. Já o que lhe enfeitava a visão era algo que apenas vendo para se explicar.
Mas não queria explicar a ninguém, pois em seu mundo era deus.
Um deus também e disposto a ponderações e assim começou a questionar o que ocorria envolta de seu mundo. O astro pulsante havia mudado de ritmo fazia um certo tempo. Se acreditasse no céu pensaria ser um sinal. Mas como interpretar um sinal se o seu mundo em si era composto de sinais?
Seu maior poder era ignorar o tempo. Sem cabelos por calendário, suas horas eram cheias, densas. Mas não eram horas e nem dias. Eram algo tido como a conclusão de um estado. Suas horas terminavam quando assim se decidisse, quando assim se estasiasse.
Não conseguia mais sentir o horizonte. Certamente era um sinal.
Não havia ansiedade, pois esta depende exclusivamente de um limite temporal ao qual não obedecia e provavelmente desconhecia. Mas a sabedoria da história, presente em sua composição lhe dizia que algo alheio se formava. No entanto, nada seria nobre o suficiente para afastar a divina elisão entre o ser palavra, e o mundo verso.
Não que fosse difícil descrever a congruência entre a terra e o lavrador, mas certos passos dispensam a explicação do caminho.
O deus apenas vivia o seu céu.
Mas nenhum paraíso é eterno, e seu começa a vivenciar o termo tempo e dar a sensação de um fim eminente. O seu lar não fez questão de defesas e seu ambiente começou a ruir. Algo mais forte (e havia?) o expulsava de sua condição.
Houve luta.
Sequelas.
Traumas.
Ninguém deve deixar a sombra apenas porque o sol se põe. Era preciso recusar o novo. Afinal, seu mundo era o eterno e no sempre não existe novidade. Era uma guerra e o inimigo tão seu desconhecido quando as suas razões. Mas não importava. Não carecia ponderações, apenas forças e esforços.
Tomado de coragem, abriu os braços em busca de seus horizontes, mas eles se estreitaram. Uma força maior que a de si, um um deus, lhe obrigava a deixar seu lar, seu mundo. E o que é um anjo sem seu inferno pessoal? Um homem?
Uma enorme angústia lhe espremia a voz e a garganta se calava ao gosto do próprio choro, do próprio desespero. Perdia ali uma parte que se integrava a si como um todo. Era como perder a sim mesmo em frações estranhas e estendidas.
Seu esforço rendeu seu sangue e talvez o de seu pária, pois o odor do momento lhe era desconhecido.
Sentiu uma ponta de vitória e ao mesmo tempo o peso das horas: durou pouco.
Não mais sentiu sua casa.
Compreendeu a escuridão e pela primeira vez sentiu medo. Pois ouvir, sem poder compreender, por um estranho idioma, a sua sentença:
Parabéns! É uma menina!