O Carreiro


 
     Cinco horas, o eixo de madeira geme. O sol ainda não despertara de seu sagrado sono e nem mesmo os pássaros acordaram. As grandes rodas de madeira ferem a terra, levantam a poeira e deixam as marcas dos cravos no chão, a pele da terra. Não respeita o rasteiro mato fino, a relva, não respeita o lamaçal, não há obstáculos. Um grito forte de comando incentiva o avanço. Muge o boi Mulato, mugem os outros onze como a saudar a aurora e puxam suavemente o carro que reproduz, em conjunto com o grojear dos mais variados pássaros, a mais bela suíte... a sinfonia do sertão. E segue por matas, entre morros, cruza ribeirões, rompe o silêncio das estradas e a crueza da solidão e da rotina. Leva cana para os engenhos, traz barris transbordantes da mais pura cachaça, transporta a lenha que alimenta os fogões das casas mais longícuas... rotina. O ruído dos eixos ecoa pelas veredas mais belas, mais alto, mais... mais. O sol já se faz alto, hora de almoçar. Do alpendre D Fátima o aguarda como de costume e sorri quando ouve, ainda fraco e longícuo, o seu canto. “Lá vem o carreiro”, diz satisfeita. “Vai Roxinho, puxa Mulato”, grita o carreiro com os bois, “eiah, hei”. Os bois obedecem prontamente e mugem como que respondessem ao amigo que os comanda e respeita como se fizessem parte de um só corpo, o carro. O mundo gira em torno do carro. Os bois vivem em função do trabalho, o carreiro em função dos bois e ambos em função do carro, que geme e canta os amores da terra em sua marcha suave, tranqüila e mansa entre as serras, os campos e os espigões, nas estradas dos sertões, deixando suas marcas e levantando a avermelhada poeira e a encobrir-se nela. O gemido se encerra. Desatrela as cangas e os bois agradecem aliviados do peso. Parecem sorrir ao ruminar e remoer a ração do campo. Felizes como criança que desce do berço e ganha seu espaço.

     O feijão borbulhando no caldeirão, colve picadinha, carne de porco, torresminho e um arroz que de tão branco reflete a pouca luz que penetra na cozinha através da janela de madeira. Melhor banquete não há. D Fátima serve aos três filhos enquanto o carreiro agradece a Deus pela felicidade de ter à grande mesa que ele mesmo fizera, o que muitas pessoas não têm e nem espera ter. “Como é bom ver a alegria dos meninos”, pensa enquanto os observa diante do que em sua natural humildade considera um banquete maravilhoso, uma fartura. O singelo sorriso da esposa ostenta a confirmação dos seus pensamentos. Diante de seus olhos encontra-se o seu maior tesouro, a mais bela de todas as riquezas, a felicidade plena. Um breve cochilo na rede pendurada no alpendre e está pronto para a lida.

     De volta à estrada. A mesma estrada, a mesma poeira, a mesma paisagem. O grito é sempre dirigido à Mulato e o boi treinado parece guiar a junta que o segue e respeita sua liderança evidenciada pela obediência. O ferrão na mão do carreiro é mais um standart que uma ferramenta. O respeito pelos animais é suficiente para que as ordens sejam prontamente aceitas e executadas. O amor pelos bichos é intenso, sincero e a recíproca é verdadeira. Um aceno para o jovem que lhe abril a porteira, um alô ao peão que passa em sua majestosa mula, uma paradinha rápida na casa do Zé vendeiro para a cachacinha de todos os dias. O trabalho é pesado, o dia é pequeno. É véspera de São João. Leva a lenha para a fogueira, busca doces na quitandeira, vai à cidade para buscar produtos diversos. Batidão. Rotina modificada. Exaustão. Lentamente o dia se rende ao mais lindo espetáculo do sertão. O céu, outrora azul anil, é manchado por um misto de cores, onde raios vermelhos entre as nuvens do horizonte fundem-se ao azul num degradê puro e suave, inigualável! A lentos passos retorna para o aconchego do lar. Os bois exaustos parecem se utilizar de uma força extra, reservada para o retorno. D Fátima o espera no alpendre. Os filhos vibram ao avistá-lo, gritam pelo pai. Os bois respondem como se sentissem saudades dos filhos de seu mestre. A recepção é sempre festiva, abraços, bênçãos, beijos. Quanto carinho! Quanto amor tem o bom caboclo. Tudo o que precisa, tem. Possui tudo o quanto possa querer. Sua junta de bois pastando no campo, sua esposa bordando tranqüila, os filhos tagarelando ao redor da casa, enfim. A luz do lampião ilumina o alpendre, onde o carreiro senta-se com sua viola para cantar sua poesia enquanto observa o luar imaginando que um dia o eixo de madeira de seu carro estará gemendo entre as estrelas daquela imensidão celestial. O sono é tranqüilo e merecido, pois ao amanhecer tudo voltará ao princípio e a rotina o espera.
Augusto Komar
Enviado por Augusto Komar em 26/04/2009
Reeditado em 25/06/2020
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