MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE UMA CADELA

Meu nome é Duquesa!... Sou uma cadela sem linhagem, sem pedigree, ou seja, uma vira-lata. Hoje estou aqui perdida em meio a essa multidão tentando reencontrar meu dono, único ser humano que de fato gosta de mim. Mas será que ele gosta mesmo?... Comecei a ter esta dúvida a partir do dia que saiu de casa e não me levou com ele. De lá para cá nunca mais o vi.

Nossa amizade começou quando, ainda recém nascidos, eu e meus três irmãos fomos jogados fora pelo dono da minha mãe. Passamos o dia todo sob um sol escaldante. Meus irmãos não resistiram e morreram. Sobrevivi graças àquele bom homem, alto, de bigode, coxo, portando uma bengala que o apoiava ao andar. Ao vê-lo com aquele bastão na mão, pensei que iria matar-me, mas não... ele agachou-se e pegou-me. Conversou um pouco comigo, olhou para meus irmãos mortos e falou-me algo... Sinceramente?... não entendi nada do que ele disse, mas senti que aquele homem estava apiedado de nós, pois enquanto falava, acariciava-me.

Chegando em sua humilde casa, mostrou-me à esposa, que pareceu não gostar nem um pouco da novidade. Pelo menos não mandou o homem deixar-me onde me encontrou!... Quem gostou mesmo do que aquele moço levara para casa foram as crianças. Não me lembro quantas, mas lembro-me que eram muitas!...

O tempo foi passando e aquele homem cuidando de mim como se eu fosse mais um filho que acabara de nascer. Nos primeiros dias em meu novo lar, ele alimentava-me com uma velha mamadeira que sua esposa havia guardado quando o último filho deixou de usá-la.

Todos o chamavam de Livá. Ele era alfaiate e quando ia para o seu ateliê, que ficava próximo à sua casa, levava-me junto. Enquanto trabalhava, dava-me alguns novelos de linha, vazios, para brincar. Como eu já disse antes, ele era um homem muito bom, carinhoso com os filhos e com a esposa... Comigo era cheio de cuidados!... Mas tinha um pequeno defeito: gostava de beber. Para mim não mudava em nada o que eu sentia por ele, porém a esposa e os filhos sofriam por conta disso; não porque ele se tornava agressivo, mas porque, sob o efeito do álcool, não media suas palavras quando se referia aos políticos da cidade, em especial ao prefeito, o que deixava dona Maria, sua esposa, inquieta, com medo do que pudessem fazer contra ele.

Quando estava de folga, costumava dormir numa rede, e eu sempre ali pertinho dele, sobre a sua velha sandália de couro, aquela que ele sempre mandava-me buscar quando chegava do trabalho. No início foi difícil entender o que ele queria!... Toda vez que apontava para as sandálias, eu corria na direção delas, pegava uma e começava a brincar, a mordê-la... Só depois de muitos berros e ameaças compreendi que queria que eu as buscasse para ele.

Certa vez ele saiu para um dos seus pileques... Lembro-me que, quando voltou, chegou carregado por um rapazola em um carrinho de mão. A esposa perguntou ao garoto o que acontecera e ele respondeu que não sabia de nada, que apenas o encontrou caído em uma viela. Preocupada, e já imaginado o que poderia ter acontecido, ajudou o rapaz a tirá-lo da galinhota e a levá-lo até a cama. Agradeceu a gentileza do jovem e o acompanhou até a porta. Retornou ao quarto onde estava deitado o marido, tirou-lhe a roupa e ficou assustada ao perceber hematomas espalhados por todo o corpo do pobre moribundo... Fora espancado, não se sabe por quem, impiedosamente. Parece que queriam matá-lo!...

Por mais de uma semana foi um entra e sai danado de pessoas naquela casa, algumas das quais eu já conhecia; outras eram estranhas para mim, principalmente aqueles últimos homens, de aparência macabra e ternos pretos, que entraram no quarto e colocaram meu dono dentro de um baú comprido, de cor arroxeada, e o levaram dali, deixando em prantos a esposa e os filhos daquele bom moço, que desde o dia que chegara carregado, não mais brincava comigo... Foi a última vez que o vi.

Dia após dia fiquei esperando-o retornar com a alegria de sempre, abraçando a esposa e afagando a cabeça dos filhos, um a um, enquanto eu, sobre duas patas, pulava a espera, também, de um afago.

Ao cair da tarde, como de costume, eu corria para baixo da rede e deitava-me sobre suas velhas sandálias de couro e ficava esperando-o deitar-se para, no vai-vem cadenciado, sentir as pontas dos seus dedos roçarem na minha cabeça. Tudo em vão... nada do meu amigo!.. Naquela casa todos andavam tristes, parece que também aguardavam ansiosamente o retorno de Livá, meu dono, meu amigo.

A saudade foi apertando-me o peito, tirando-me o apetite, deixando-me fraca. Dona Maria, preocupada com o meu estado, tentava alimentar-me. Eu nada comia, nada bebia... Meio tonta devido à fraqueza, de vez em quando levantava-me das velhas alpargatas e dirigia-me até a porta da sala na esperança de vê-lo entrar. Após horas de espera, retornava aos velhos chinelos de couro. Os dias foram passando e eu definhando-me até não mais ter forças para levantar-me. A última lembrança que tenho é a daquela abatida senhora tentando introduzir o bico da velha mamadeira com leite em minha boca, tentando ainda revitalizar-me, como fazia meu dono assim que cheguei àquela casa... De repente minhas vistas escureceram-se e nada mais vi, nada mais escutei, nada mais senti... Agora encontro-me aqui, perdida em meio a essa multidão de pessoas vestidas de branco, sobre um chão macio, também branco, procurando meu dono. A multidão calmamente caminha em direção a um enorme portão azul, que tem como sentinela um senhor de barbas e roupa brancas, de nome Pedro, portando numa das mãos uma chave dourada. A impressão que tenho é a que estamos sobre as nuvens, a caminho do céu, o que me faz lembrar do que dissera certa vez a esposa do meu amo aos seus filhos: disse ela que somente as pessoas boas, de bom coração, entrariam no céu...

Caso ela esteja certa, tenho tudo para acreditar que foi para cá que veio meu amo, meu dono, meu amigo... e se me deixarem entrar, não será difícil reencontrá-lo.

Joésio Menezes
Enviado por Joésio Menezes em 27/04/2009
Código do texto: T1562221
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