A Sombra dos Ataúdes

 
     Impera o silêncio nas ruas estreitas. O soar do sino da igreja anuncia o lutuoso momento. Em passos lentos o cortejo surge no alto da ladeira. Enquanto os homens se revezam nas alças, as senhoras, todas de preto, entoam cânticos religiosos e alguns cochicham paralelamente. Lágrimas escorrem por trás dos óculos escuros. Há flores nas mãos das crianças e o olor dos crisântemos é exalado e pode-se senti-lo de longe. A cena é a mesma que há anos se repete, quando algum dos poucos moradores “parte dessa para uma melhor”.
 
     Essa é a vez da Srta Luana, filha do leiteiro. A pobre vinha sofrendo há dez dos seus quinze anos de uma doença degenerativa que nem os médicos tinham explicações ou tratamento. É realmente triste sepultar alguém tão jovem, com toda a vida pela frente. Não é fácil conciliar os sentimentos e a necessidade do emprego, assim as lágrimas enchem os meus olhos ao passo que a minha pá joga para fora a terra, a mesma que em alguns instantes cobrirá a pobre Srta Luana, a mesma vem cobrindo a muitos. Sete palmos duros de cavar e mais duros ainda de tapar, mas dizem que o bom filho sempre retorna à casa do Pai, assim que Deus a tenha.

     Olha! Lá vem o cortejo. Está na hora, a última hora. Vem conduzindo o pai, o irmão mais velho que é ferreiro, o tio padeiro, um outro tio que é domador de burros, o avô que nada mais é e o professor de história que sempre está presente conduzindo alguém, sem contar com os que acompanham de perto para substituir os que se cansam. Os tios, tias, avós, primos, primos 2º, amigos, curiosos e as beatas fofoqueiras rodeiam a urna posta sobre tripés para uma última oração. Uns oram, uns cantam, os pais choram, o irmão conforta a mãe, os tios observam de longe, os curiosos observam de perto e as beatas observam o comportamento de todos e cochicham. De dentro da cova faço a minha oração silenciosa enquanto oriento os que vão baixar a urna e ela desce até o fundo. Alguns punhados de terra, algumas flores e pá a pá eu cubro a urna, fecho o túmulo, os parentes depositam flores, choram e finda-se o meu trabalho, o último do dia, o terceiro de hoje. Essa tem sido a minha rotina há 25 anos. As lágrimas são as mesmas, o trabalho é o mesmo e os mortos são os únicos que não sofrem, não mais.

     Durante o tempo que servi aos mortos, os mais ilustres moradores da cidade passaram por meus serviços. Ali à esquerda estão os jazigos mais luxuosos pertencentes aos cidadãos mais abastados, à direita os indigentes, aqueles infelizes que após a morte não foram reconhecidos, os corpos que não foram reclamados por nenhum parente e aqui no centro as covas. Vez ou outra me vejo a passear entre as sepulturas, meditando e recordando o passado dos que descansam. Esse túmulo, com jardim é onde repousa a Sra Maria Franca, franca por que nada deixava para depois e sempre dizia o que pensava. Ela era cheia de vida, saudável, muito saudável. Certo dia, seu irmão a quem amava incondicionalmente ao limpar a cartucheira 28 que tanto estimava, acertou-a na cabeça. Fora um tiro acidental, uma fatalidade. O jovem tinha um apresso muito grande por sua irmã e esse fatídico acontecimento o tornou depressivo a ponto de não suportar viver com o peso da morte de sua amada irmã nas costas... e por fim o suicídio. Pois, sim, o túmulo à direita, sem nenhum enfeite é o dele. Esse de mármore rosa é da Moreninha do Ribeirão, moça graciosa, fogosa. Todos os rapazes da região se deliciaram com seus carinhos as escondidas, ora com um no meio das plantações, ora com outro num refrescante banho na cachoeira, porém um dos rapazes com quem estivera, apaixonou-se e se casou com ela, passando a viver nas terras que seu pai lhes dera. Mas, a Moreninha não era mulher para um homem só, jamais conseguiria dar-se apenas ao seu marido, entregando-se aos deleites de todos, como antes fizera. Sempre às escondidas, sempre na moita do capinzal, detrás do celeiro do Velho Antônio ou na cachoeira. Seu marido desconfiava, era vítima de chacotas. Certa vez, o jovem esposo acordou no meio da noite e notando sua ausência na cama, procurou-a por toda a casa, quintal e arredores. Retornando para casa, ouviu gemidos vindos de próximo ao curral e lá a encontrou com o filho do caseiro, menino de 13 anos e é por isso que ela está aqui, sepultada em uma cova simples. Ali está o jazigo da família Lopes, os fundadores da cidade e ali o do primeiro padre. Aquele com duas cruzes é o das gêmeas cantoras do cabaré, elas eram realmente lindas, as moças mais requisitadas pelos nobres e também mais odiadas pelas senhoras e beatas da cidade. Dizem as más línguas que teria sido a mando de uma dessas senhoras que um desconhecido as violentou e estrangulou... e aquele túmulo do lado de fora da cerca do cemitério pertence ao assassino que fora morto em uma emboscada organizada pelos mesmos nobres senhores que por tantas vezes se deliciaram com os prazeres proporcionados pelas moças. E muitos outros, muitos mais. Incontáveis são as histórias que acompanham os mortos.

     É como disse, são inúmeros os túmulos e inúmeras são as histórias que tenho para contar a quem quer que tenha tempo, paciência e coragem para ouvi-las. Digo que é pra quem tem coragem, pois é preciso ser corajoso para se assentar aqui comigo, uma vez que sobre este túmulo simples, desbotado e descuidado, passo a eternidade a relatar as reminiscências de alguém que passou a vida toda cuidando das moradias dos mortos e hoje vê as vidas passarem, descansando à sombra do seu próprio ataúde. Sim, esta é a minha morada eterna. Fui colocado ao lado dos mais nobre por uma questão de reconhecimento pelos trabalhos prestados com tanto carinho e dedicação. Contudo, houve rumores de um suposto tesouro escondido sob minha urna... apenas boatos, mas os ladrões que violaram este túmulo para o saquearem, ao se depararem com o mais completo nada, o fecharam sem importar-se em colocar o corpo novamente dentro do caixão. E é por essa razão, que para não assombrar o ambiente, prefiro contar as histórias dos moradores deste lutuoso condomínio
Augusto Komar
Enviado por Augusto Komar em 28/04/2009
Reeditado em 29/06/2020
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