NO DORSO DA JOANINHA

Era uma vez, um menino que não sabia respirar. Seu nome, João.

Seus pulmões eram de algodão, não funcionavam, nunca funcionaram.

A mãe, mulher forte, de voz decidida e passos nunca trêmulos. O pai, calado no olhar, destravado nos carinhos, desarmado nos sonhos.

Tinhas vários irmãos, cada um do seu jeito. O pequeno com sete, o maior com doze. João estava no meio dessa romaria sem fim, como um pêndulo que ficava sempre se escorando nos demais para não fugir do seu cordel.

Com esse véu, a vida deles foi prosseguindo numa saga sem pompa, sem câimbra, sem desafinar num tijolo sequer, sem arrancar uma fruta apenas do pé.

Os pais, criaturas que sabiam como remendar as feridas sem cicatrizar de vez, conheciam a fundo cada vértebra dessa cria, cada piscada de olho, para eles, se traduzia como um prato já comido, já saciado, já cerzido. Já convertido em luz.

A luta para gerar pedaços de pão não tinha regras, nem tampouco respingava a mesma melodia, ou a mesma sobremesa. Mas sempre davam um jeito, nunca faltava alecrim ou alho-poró na mesa. Pelo menos do que eu me lembre.

Os pais de João tinham como certo que tudo o que viessem a esculpir nessa vida, precisaria dos arremates daquele que havia montado aquele palco, toda aquela alegoria, toda aquela feliniana, rouca e surrada melodia.

Mais do que uma devoção, mais do que encurvar a coluna num gesto sem qualquer lastro de irreverência, Lucas e Jussara sempre souberam que seus passos estavam cabrestados a outras veias, a outras fadas, a outras feridas ainda abertas, com emplastros depositados embaixo dos pires.

Numa manhã, dia quinze de maio acho, João adoeceu.

Seu corpo abriu os olhos todo salpicado por uma gosma grená, tinha cheiro esquisito, parecia praga do outro lado do rio.

Do fio do cabelo até o final da unha, o garoto parecia uma bizarra criatura de outros mundos, uma coisa que se esgueirava no repugnante, parecia que o Demo tinha tido um repente de Criador e ejaculara a sua maior obra-prima, com todo talento que poderia ter roubado dos homens.

A família entrou num pânico que, até então, nunca havia sido salpicado e nem, tampouco, aninhado.

Numa loucura que nunca tinha sido antes tocada, eles ficaram absurdamente sem voz, sem algoz, sem entender uma letra sequer dessa desembestada cena.

Pareciam uma catarse sem forma, nem destino definido, sem ciranda para descansar os ossos. Sem forma para moldar seus poros.

Assim o João foi diminuindo de tamanho.

De início numa velocidade tartaruguesta, em seguida parece que foi tomado por uma pressa de saúva.

João então começou a ficar tão pequeno, mais tão pequeno que nem cabia mais no meio da mão, no meio do buraco que o vento produzia na beira do mar, no meio do atalho que unia os meus sonhos.

Isso aconteceu em exatos nove segundos, nem deu tempo para despedir de João, desejar qualquer coisa para ele, mandar algo para ele comer, sei lá.

Então ele sumiu. Sem deixar nenhum rastro, nenhuma semente, nenhuma marca que lembrasse o que tinha sido nessa vida.

Isso aconteceu de fato, não se trata da digestão de uma mente cheia de faces e nem do relato roubado de uma daqueles livros atirados no canto do quarto.

Hoje vivemos juntos no dorso de uma joaninha que, todas manhãs, vem nos atiçar com perfumes e trejeitos de menina, vem cavalgar na nossa varanda feito soldado sem feitor, vem vigorar nas nossas rendas feito o meu velejar mais solene. mais menino, mais vulgar.

E assim ficaremos por toda estrada, até sempre, até sempre mais.